Sabe aquela profecia em voga até pouco tempo atrás, que pregava que tudo ia virar fintech? Que nada. O que vem se desenhando, na verdade, é um futuro onde todas as empresas serão empresas de tecnologia, com ofertas concentradas para tudo o que o cliente precisa – de forma digital, em tempo real e omnichannel. Isso inclui finanças, claro – mas não apenas. É o que diz Gueitiro Genso, que foi presidente do PicPay até o ano passado. “Daqui três a cinco anos, teremos no máximo dez grandes gestores de ecossistemas no país”.
O ex-funcionário de carreira do Banco do Brasil, que ocupou também a presidência da Previ (o gigantesco fundo de pensão dos funcionários do banco), decidiu pivotar sua carreira quando percebeu o que vinha pela frente.
Genso explica, contudo, que essa concentração inevitável não significará o fim das fintechs menores e de nicho, ao contrário: “Elas continuarão liderando as inovações, testando modelos, mas acabarão compradas pelos grandes ou plugadas a eles”, diz. “Será preciso ter escala para sobreviver”.
Nesta semana, Genso, que cumpre período de “gardening leave” do PicPay, conversou com o portal sobre sua visão de futuro para o mercado financeiro. Ele está aproveitando essa espécie de licença remunerada para estudar muito, dar mentoria e fazer investimentos em startups – ele faz parte da FEA Angels e investe na venture building FCJ Triângulo.
Genso não quer cravar quais serão esses grandes ecossistemas vencedores, mas inclui os cinco maiores bancos do país, varejistas como Magazine Luiza e Americanas, Mercado Livre e, claro, o PicPay na lista dos mais prováveis.
FINTECHS BRASIL – O que são esses ecossistemas? E por que sobrarão tão poucos?
GUEITIRO GENSO – Ecossistemas são grandes plataformas que atraem e monetizam milhões de usuários. Na China existem só dois, o AliPay e o WeChat. Mas lá e diferente, não há livre competição e eles pularam etapas da evolução tecnológica, passaram do dinheiro de papel para os smartphones. No Brasil, temos concorrência e um sistema financeiro forte e avançado que vem sendo desafiado pelas fintechs. Apesar de ainda terem a vantagem da escala, os bancos estão pouco a pouco perdendo seus diferenciais competitivos: primeiro foram as agências, hoje quase desnecessárias; agora, os dados acumulados por mais de 50 anos dos seus milhões de clientes também deixarão de ser um ativo exclusivo. Com o Open Banking, o cliente/consumidor terá poder sobre suas próprias informações, basta fazer o opt in para quais instituições quiser, e os benefícios para ele serão grandes. Isso equaliza a competição. Mas ter escala ainda será necessário. Esses ecossistemas serão como marketplaces reunindo varejistas, bancos, fintechs, agregadores de conta e iniciadores de pagamento.
FINTECHS BRASIL – Como será a monetização desses ecossistemas?
GG – Eu diria que há três principais drivers de rentabilização para esses ecossistemas: crédito, gestão de investimentos e promoção do ‘match’ entre vendedores e compradores, como o Mercado Pago faz – e eles ainda por cima oferecem a solução logística também. Esse é um negócio que vale muito, e os ecossistemas poderão cobrar comissões por essa intermediação. Imagine oferecer a um restaurante de bairro, que vende 100 refeições na hora do almoço, a possibilidade de enviar um push para pessoas circulando ao meio dia num raio de 200 metros, oferecendo descontos? Ou oferecer a um supermercado a possibilidade de acessar pessoas ao redor, oferecendo produtos que vencem no dia, por 50% de desconto? Aumentaria muito as vendas. Quanto mais usuários, mais dados a plataforma obtém para simular cenários – o que ajuda a precificar melhor o crédito, por exemplo. A diferença entre o que se fazia na velha economia e agora na nova economia é exatamente escala, tecnologia real time e omnichannel.
FINTECHS BRASIL – O que vai acontecer com as mais de mil fintechs que temos hoje no Brasil?
GG – Elas tiveram um papel muito importante, ao testar novas tecnologias, inovar, e até inspirar os grandes bancos. Num primeiro momento achávamos que todas as fintechs iriam se viabilizar, agora já vemos a realidade. Não tem muito mais espaço para coexistência de tantas, custa muito caro, queima-se muito caixa para trazer um cliente para dentro. Aliás, trazer não custa muito, custa é rentabilizá-lo, fazê-lo usar, transacionar. Não dá mais para nascer querendo ser um gestor de ecossistema, assim do zero. Existe muita sobreposição, um efeito chamado multihoming: tem gente hoje que tem conta em 20 bancos digitais só para testar. Estão na base, mas não transacionam. É bacana, é saudável e essa proliferação de fintechs deve continuar a ser incentivada. Mas como todas as startups, as fintechs nascem para solucionar uma dor, um problema de algum grupo de usuários que não está sendo atendido por ninguém, ou está sendo mal atendido pelos grandes players. É natural que a maioria dessas fintechs que nasceram para atender um nicho especifico, uma dor especifica, não sobrevivam – ou que sejam absorvidas por algum gestor de ecossistema.
FINTECHS BRASIL – O que uma fintech deve fazer para garantir sua sobrevivência?
GG – Até agora, as fintechs tiveram um papel muito importante em pagamentos, os bancos grandes viraram um grande supermercado, seus aplicativos têm tudo, mas foram construídos não sob a lógica da experiência do cliente, mas sob a lógica de produto – o cliente entra lá e vai procurando o que precisa. Isso está ultrapassado. Acredito que ainda tem muito espaço para pequenas fintechs, afinal os grandes gestores de plataforma não vão fazer tudo bem feito, vai ter espaço dentro de nichos – como uma fintech só para caminhoneiros, que pode estar plugada em um dos grandes ecossistemas. Para sobreviver, é preciso cultivar a adaptabilidade, ambiente cultural criativo. Sai comando e controle, entra autonomia e confiança. Além disso, há um terceiro fator importantíssimo, a colaboração – esse é um mindset fundamental na nova economia. Tem que colaborar até com seu concorrente. E isso não vale apenas para fintechs.
FINTECHS BRASIL – E quanto aos bancos? Além de escala, o que credencia os grandes bancos a estarem entre os dez grandes ecossistemas do futuro? Afinal, muito se fala sobre seu pesado legado, custos de infraestrutura que exigem a cobrança de tarifas que hoje não fazem mais sentido…
GG – Eles estão se mexendo em várias frentes. Estão comprando fintechs (Santander/Toro, Inter/Stone), criando suas próprias (Bradesco/Next), migrando para a nuvem (Itaú), e todos avançando no sentido de virar empresas de tecnologia. O CTO hoje é o novo CEO – vide o que fizeram a Amazon e a XP.
FINTECHS BRASIL – O que fez você abandonar a carreira estável e bem sucedida em um banco público?
GG – Eu me dei conta de que estava em curso uma mudança estrutural, e queis participar. Na base dessa mudança está, claro, o acesso crescente das pessoas à tecnologia, que está criando uma geração de consumidores muito mais empoderados, que faz tudo pelo smartphone. E aqui no Brasil temos um segundo ator que acelera mais ainda essa transformação, um regulador chamado Banco Central. Desde 2013, o BC está com uma agenda pro educação financeira e pro inclusão financeira. A adoção de tecnologia e a velocidade do surgimento de novas possibilidades é tão grande que um disruptor hoje pode ser ultrapassado amanhã. O PIX já está tão absorvido que já parece até antigo, o Open Finance vem aí e o BC já está falando em moeda digital. Então, é isso: eu pivotei, entrei nessa, mas acho que ainda estamos só no começo.