DARIO PALHARES
A alta da taxa Selic, de 11,75 pontos percentuais ao longo dos últimos 18 meses, jogou água no chope das fintechs especializadas em operações de crédito. Em entrevista a Fintechs Brasil, o presidente da Associação Brasileira de Crédito Digital (ABCD), Sandro Reiss, prevê um crescimento do volume de operações do segmento nesta temporada em uma escala bem inferior à média de três dígitos, para a casa de R$ 12,7 bilhões, registrada entre 2019 e 2021 nas pesquisas realizadas pela entidade em parceria com a consultoria PwC.
“O quadro é, sem dúvida, desfavorável para o segmento, com os juros e a inflação em ascensão e o endividamento das famílias brasileiras no patamar de 78% – o mais alto registrado nos últimos 12 anos”, diz Reiss. “Mas, apesar da conjuntura adversa, sou otimista. Até o fim da década, as fintechs deverão responder por algo entre 30% a 40% do mercado nacional de crédito.”
Contam pontos a favor das startups, de acordo com Reiss, a flexibilidade de suas estruturas, que podem encolher ou crescer de acordo com os ventos da conjuntura, e o uso intensivo de tecnologia, que se traduzem em custos fixos operacionais bem inferiores aos dos bancos tradicionais. Também merece destaque a criatividade das empresas do nicho, como atestam as recentes operações de concessão de crédito com garantias nos celulares dos tomadores.
“As fintechs brasileiras têm, enfim, resiliência de sobra. Afinal, elas surgiram na última década, um período que, decididamente, não teve céu de brigadeiro”, destaca Reiss, que acumula larga experiência no ramo, como fundador e CEO da Geru, em 2013, e da Open Co, no último ano.
Um dos principais desafios do segmento, na avaliação do dirigente, diz respeito ao funding. A situação é mais aguda entre aquelas startups que recorrem a operações de securitização no mercado de capitais para captar recursos. Nessa opção, adotada de forma crescente pelas fintechs desde meados da última década, o custo do capital é definido pelas taxas de retorno esperadas pelos investidores, que estão em curva ascendente, em razão dos juros altos.
“Quem trabalha com securitização encontra-se, no momento, em situação muito desvantajosa em relação aos bancos, que contam com os depósitos à vista, sem remuneração, como fonte de funding”, diz Reiss. “O momento é de risco alto para os ativos e custo elevado para os passivos.”
Leia a seguir os principais trechos do bate-papo:
FINTECHS BRASIL – A alta da Selic, que voltou à casa de dígitos, reduziu a competitividade das fintechs de crédito? A inadimplência preocupa?
SANDRO REISS – O cenário macroeconômico, com juros, inflação e o endividamento das famílias em alta, certamente não e favorável para o mercado de crédito em geral. No quadro atual, os brasileiros vêm usando o endividamento para substituir a renda, como forma de garantir padrões mínimos de consumo. Em razão disso, as fintechs de crédito sofrem os efeitos de uma maior inadimplência, que também afeta, claro, os bancos tradicionais e o varejo.
FINTECHS BRASIL – Quais os nichos do segmento representado pela ABCD que vêm sofrendo com maior intensidade os efeitos dos juros altos?
SANDRO REISS – No caso das fintechs de crédito, as mais afetadas são aquelas que trabalham com securitização, que utilizam fundos de investimento em direitos creditórios, FIDCs, como fontes de financiamento. Dentro do grupo de nossas associadas, que é heterogêneo, há startups que utilizam capitais próprios e outras que se financiam com operações securitizadas no mercado de capitais. A pressão do CDI alto e de spreads igualmente altos coloca muita pressão nas margens desse segundo grupo.
FINTECHS BRASIL – Há opções de funding mais em conta para as fintechs?
SANDRO REISS – No curto prazo, não vejo solução. Mas no médio, sim. O arcabouço regulatório sugere que fintechs podem se tornar instituições financeiras e, assim, ter acesso a funding barato, ou seja, depósitos – opção vedada às Sociedades de Crédito Direto, as SCDs, e Sociedades de Empréstimos entre Pessoas, as SEPs, que são as formatações predominantes entre as fintechs. Outra opção são acordos operacionais de fintechs com bancos, especialmente de pequeno e médio porte. Já há parcerias do gênero, algumas envolvendo até grandes nomes do setor, que estão garantindo o acesso de fintechs a funding de instituições financeiras tradicionais.
FINTECHS BRASIL – A segunda edição da pesquisa sobre fintechs de crédito realizada pela ABCD em parceria com a PwC revelou que um grupo de 37 startups do segmento concedeu empréstimos de R$ 12,7 bilhões em 2021, quase o dobro do volume registrado em 2020. Quais seriam os números totais do segmento? E qual a previsão de crescimento neste ano?
SANDRO REISS – A pesquisa, como você observou, não é um censo, já que muitas fintechs não participam do levantamento. O volume de crédito concedido pelo segmento é, portanto, muito maior: certamente não corresponde a menos de 5% de um mercado de cerca de R$ 5 trilhões anos ao ano. É um número muito relevante e que vem crescendo a taxas de 100% a cada ano. A evolução neste ano não será tão expressiva, por conta dos juros altos, mas, a médio e longo prazo, as fintechs tendem a ocupar um espaço cada vez maior em operações de crédito.
FINTECHS BRASIL – A fatia das fintechs no mercado local crédito tem condições de atingir que proporções?
SANDRO REISS – Até o fim da década, as fintechs deverão responder por 30% a 40% do mercado nacional de crédito. É uma projeção, diga-se, absolutamente viável. Afinal, as fintechs trabalham, no Brasil e no exterior, para resolver problemas dos clientes e há registros de crescimentos exponenciais dessas startups em mercados muito menos problemáticos do que o Brasil, que têm taxas de juros e spreads bancários entre os maiores do mundo.
FINTECHS BRASIL – Quais os principais casos de sucesso no exterior?
SANDRO REISS – Um bom exemplo é o mercado de crédito pessoal dos Estados Unidos, onde as fintechs detêm hoje uma fatia de mais de 30% do volume. Essa tendência vai se capitalizando e crescendo de forma exponencial. Com juros altos e inflação, a taxa de crescimento cai e as fintechs até perdem mercado, aqui e lá fora. Mas a reação é questão de tempo.
FINTECHS BRASIL – A pesquisa da ABCD e da PwC mostra que 43% das fintechs de crédito atendem exclusivamente pessoas físicas (PFs) e apenas 19% são inteiramente voltadas a pessoas jurídicas (PJs). Não é um descompasso, considerando as dificuldades enfrentadas por empresas de menor porte no acesso ao crédito?
SANDRO REISS – As fintechs de crédito voltadas a PFs são, de fato, mais numerosas e têm mais visibilidade. Esse gap, no entanto, é mais conjuntural do que um sinalizador de tendências, até porque já há muitas startups atuando no segmento de PJs. O potencial desse mercado é enorme, mas demanda alguns cuidados na abordagem. Em razão da queda do emprego formal, há uma linha tênue entre o que é o autônomo, o profissional liberal e o empresário. Esse público-alvo é composto, em grande parte, por potenciais clientes que não chegam a ser micro ou pequenos empresários, mas também não são mais PFs convencionais.
FINTECHS BRASIL – Os investimentos em fintechs apresentaram queda de 71% no primeiro semestre do ano, fechando o período na casa de US$ 1,4 bilhão. As startups de crédito também sentiram o golpe?
SANDRO REISS – Com certeza houve queda nos investimentos. O fluxo de apoiadores de empresas de tecnologia foi intenso nos últimos anos, mas, com os juros em alta, houve uma redução do apetite dos investidores por retornos longos… em sete, dez ou 12 anos. Os aportes diminuíram muito, inclusive para as fintechs especializadas em crédito. O interesse está mais restrito, mas investimentos seguem acontecendo. Há empresas no segmento com propostas sólidas e planos ambiciosos que continuam a merecer a atenção dos investidores. Superada essa conjuntura adversa, os aportes de recursos deverão retomar a curva de alta.
FINTECHS BRASIL –Uma prática relativamente recente no segmento é o buy now pay later, o BNPL, sem cartão. Qual o potencial dessa modalidade?
SANDRO REISS – O BNPL é um velho conhecido dos brasileiros. O diferencial da nova geração da modalidade, sem cartão, são operações integradas com o varejo, que, não há dúvida, representam ameaças aos cartões de crédito. O cenário a médio e logo prazo para as fintechs que atuam nesse segmento é muito promissor, mas os juros altos atrapalham a sua decolagem, da mesma forma que dificultam os financiamentos por cartões. Como os parcelamentos sem juros no cartão comprometem, por vezes, o limite de crédito, os brasileiros preferem deixar de lado essa opção.
FINTECHS BRASIL – O PIX Garantido, que o Banco Central planeja implantar ainda neste ano, não pode encurtar o voo do BNPL sem cartão?
SANDRO REISS – O PIX está causando uma mudança tectônica na indústria de pagamentos. Nas operações à vista, por exemplo, ele vem tomando espaço de forma crescente de cartões de crédito e débito e até mesmo do dinheiro em espécie. O PIX Garantido tem potencial, tudo indica, de substituir totalmente os parcelamentos em cartões de crédito para grande parte da população brasileira – especialmente aqueles que não têm acesso a programas de benefícios mais robustos das administradoras. Mas não o vejo como uma ameaça, e sim como uma tremenda oportunidade para as fintechs de crédito, inclusive para aquelas que operam com BNPL. Elas estão muito atentas ao PIX e ao Open Finance, que continuarão a promover mudanças gigantescas na indústria de crédito.