Novo mercado de recebíveis e o papel do Bacen | Paulo David

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Em junho deste ano, entrou em vigor a obrigatoriedade do registro do recebível do cartão de crédito, sendo este apenas o primeiro de muitos passos que o Brasil dará em direção a construção de um novo mercado de crédito, principalmente, o que usa recebíveis como garantia. Trata-se de uma verdadeira revolução e muita coisa ainda está por vir.

Por outro lado, a entrada em produção do novo sistema de registro veio acompanhada de algumas críticas importantes, direcionadas por conta dos problemas técnicos e operacionais enfrentados. A mais contundente de todas foi feita pelo Valor Econômico desta semana e foi construída com base na visão de “executivos do setor, sob condição de anonimato” que destacaram que o erro principal foi do Banco Central (BC) por “deixar competidores mais soltos para se autorregularem”.

Em que pese o modelo de interoperabilidade não estar funcionando 100% como deveria, uma crítica desta nos parece descabida e provavelmente deve vir de alguém muito confortável com o Brasil de antigamente, sem competição e com 80% do mercado concentrado em 4 ou 5 players. Quando o Banco Central optou pelo modelo de autorregulamentação das IMFs (infraestruturas do mercado financeiro), dando muito mais autonomia e responsabilidade para quem irá operar no mercado, ele sabia dos riscos e dos problemas que poderia vir a enfrentar.

Com certeza seria muito mais rápido se a norma previsse como as empresas deveriam interoperar. Ela poderia, por exemplo, prever que “a interoperabilidade entre as empresas do mercado se daria por troca de arquivos CNAB” e ponto final. Certamente os incumbentes do mercado aplaudiram, pois é assim que fazem hoje e certamente o mercado não patinaria na largada (até mesmo porque seriam os mesmos 4-5 players se conversando, através das 1-2 infraestruturas que usam hoje).

Esse modelo, que não apresentaria falhas no começo, em nada contribuiria para inovação do mercado, não fomentaria a entrada de novos participantes, nem a modernização das tecnologias usadas.

Dessa forma, ao optar por um caminho mais sofisticado e alinhado com os mercados financeiros mais modernos do mundo, o Banco Central deu aos participantes (atuais e futuros) muito mais autonomia e liberdade. E, obviamente, o Banco Central exerce com muito mais foco e qualidade seu papel principal: regular.

O objetivo do Banco Central é fortalecer o mercado financeiro, trazer mais players para a arena competitiva e criar bases sólidas para que o mercado brasileiro avance, continue se modernizando e tenha cada vez mais lugar de destaque na cena global. Ou seja, para que isso aconteça, o Banco Central enxerga que os players do mercado precisam amadurecer e decidirem juntos qual caminho seguir, qual a melhor tecnologia deve ser adotada em dado momento e, principalmente, qual a melhor forma de atenderem seus clientes. E aqui o famoso ditado africano cai como uma luva: “quem quer ir rápido vai sozinho. Quem quer ir longe vai acompanhado”.

O Banco Central sabe que o Brasil é uma potência internacional quando o assunto é mercado financeiro. Não à toa, o mundo inteiro olha para nós com admiração e enxergando oportunidades. Se mesmo com todo o caos político e econômico que vivemos nos últimos anos o Brasil é O lugar para se empreender quando o assunto é mercado financeiro, devemos tirar o chapéu para nosso regulador.

Por isso tenho certeza que nós, empreendedores, devemos ter muito mais respeito pelo trabalho do Banco Central. Da mesma forma, devemos olhar para o lado e fazer crítica a alguns participantes do mercado financeiro que dizem que querem o futuro, mas não investem quase nada dos seus lucros nele. Os players mais tradicionais do sistema financeiro, que com certeza não são grandes fãs da competição e das inovações, também têm que se adaptar e facilitar a agenda de modernização.

Tem player importante e relevante que só consegue processar na terça o que recebeu na sexta-feira à noite. É óbvio que falamos de centenas de milhares de operações, mas para quem realmente entende de tecnologia a desculpa soa mais para “não investimos em novas tecnologias durante anos, nosso legado consome 100% do que temos alocado no budget com tecnologia, ninguém sabe exatamente como navegar pelo emaranhado de problemas que temos no dia a dia e agora é muito difícil fazer algo novo”. É mais fácil falar que “o volume é gigantesco e que o sistema financeiro pode parar”.

É impossível que o Brasil possa entrar de verdade no novo mundo digital sem que haja investimento, dedicação, trabalho duro e uma ou outra derrapada. É igual esperar que Pelé fosse campeão sem nunca ter perdido um pênalti na carreira. Os problemas técnicos (integração entre as partes, alto volume de dados, lentidão no processamento, evolução das formas de troca de informações e padronização de algumas informações) são todos resolvíveis e serão, em breve, coisa do passado.

Nas discussões que temos com o Banco Central, nossos competidores e com o mercado podemos testemunhar um esforço gigantesco de muitos para fazer com que o mercado financeiro evolua e supere os obstáculos. Para os participantes que não conseguem se adaptar, o Banco Central tem ferramentas ao seu dispor para lidar (sanções, penalidades e exclusão).

Aperfeiçoar a tecnologia e os mecanismos de interoperabilidade é mandatório e, com certeza, o mercado e o regulador vão se encarregar para que isso aconteça o mais breve possível. Construir infraestrutura tecnológica é algo extremamente desafiador e somos plenamente capazes de fazer isso no Brasil. E será feito.

O Open Banking também sofreu atrasos. O iPhone 12 sofreu atrasos. A produção do filme Titanic enfrentou diversos atrasos. Na história, toda evolução tecnológica foi marcada pelo seu próprio ritmo. Não podemos voltar para o modelo antigo, em que empresas, lojistas e comércios eram reféns de um monopólio e somente podiam se financiar com um determinado credor. Isso se mostrou maléfico para toda a economia brasileira e impede que avancemos como nação.

Por experiência própria, posso afirmar que o papel do Banco Central é sério, comprometido com uma agenda de inovação e modernização e alinhadíssimo com o florescimento de toda a cena fintech que está acontecendo. E se hoje somos referência em infraestrutura, desenvolvimento, ciências de dados, usabilidade e UX, muito se deve ao papel fomentador do Banco Central.

Acerta o Banco Central ao deixar que o mercado se autorregule e, quanto mais competição tivermos, mais rápido poderemos evoluir e escolher com que empresas vamos querer trabalhar.

 

As opiniões neste espaço refletem a visão dos colunistas, e não a do Finsiders.

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Paulo David é fundador e CEO da Grafeno, fintech que oferece contas digitais e infraestrutura de registros eletrônicos para empresas e credores; e é sócio do SPC Brasil na construção de infraestrutura para o mercado financeiro. Fundou a Biva, que foi adquirida pela PagSeguro. Foi superintendente do Sofisa Direto. Atuou na equipe do Pinheiro Neto Advogados, e na equipe da gestora de investimentos KPTL. É investidor anjo em fintechs no Brasil e na Europa.

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