Dario Palhares
Antes desprezados e estigmatizados, os criptoativos fincaram a sua bandeira definitivamente no mercado de capitais brasileiro em 2021. Entre janeiro e dezembro, instituições especializadas no nicho e grandes nomes das finanças, casos de BTG Pactual e Itaú, constituíram 37 fundos de investimento convencionais ancorados em ativos virtuais, elevando em 146% o total de produtos do gênero registrados nos sistemas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), e, de quebra, deram início às operações de cinco fundos de índices (ETFs, no acrônimo em inglês) nos mesmos moldes.
Atenta a essa forte curva de alta, a B3 já faz planos de explorar a seara cripto – com o lançamento de um ETF próprio e a prestação de serviços específicos, como custódia e tokenização – e a Câmara dos Deputados aprovou e despachou para o Senado, em dezembro, o Projeto de Lei (PL) 2303/15, que estabelece regras e parâmetros para a fiscalização do segmento.
Arranhando um iceberg
“Estamos apenas arranhando a superfície de um enorme iceberg. As criptomoedas vão se integrar, de forma irreversível, à chamada nova economia”, comenta Rodrigo Monteiro, diretor-executivo da Associação Brasileira de Criptoeconomia (ABCripto), que destaca outro indicador, da Receita Federal, sobre a massificação dessas aplicações virtuais. “O total de investidores em criptoativos saltou de 94 mil para 592 mil entre dezembro de 2019 e maio último, e segue em alta.”
Boa parte das novidades surgidas recentemente na área trazem a assinatura da Vitreo. Dos dez fundos da gestora lastreados total ou parcialmente em criptoativos, oito foram apresentados ao mercado em 2021. Um dos mais recentes e badalados tem a sua carteira focada no chamado metaverso, que pretende promover a integração dos universos real e virtual.
Lançado no início de dezembro, o Metaverso Ações FIA BDR Nível I destina 90% dos recursos para ações e brazilian depositary receipts (BDRs) de empresas de ponta na estruturação desse cenário híbrido – como Nvidia, AMD, Roblox, Unity e Meta, a nova denominação do Facebook – e aplica a parcela restante em criptomoedas ligadas a jogos play-to-earn, que garantem prêmios aos participantes, e ao gênero NFT (non-fungible token), muito usado na tokenização de obras de arte.
“O novo fundo, que atraiu quatro mil cotistas logo nos dois primeiros dias de operação, já conta com patrimônio líquido de R$ 30 milhões”, conta George Wachsmann, sócio e chefe de gestão da Vitreo.
Criada em 2018, a gestora fez a sua incursão inicial em criptos em fevereiro de 2020 com o CriptoMoedas, um multimercado que, seguindo as normas estabelecidas pela CVM, só executa apostas em criptoativos estrangeiros.
“Criptolight”
O produto, com um patrimônio de R$ 450 milhões e 9 mil cotistas, apresentou algumas inovações no nicho, como gestão ativa, focada em resultados superiores ao benchmark estabelecido, alocação integral em ativos virtuais e aplicações realizadas diretamente a partir do Brasil, sem o recurso a fundos no exterior, como faziam os concorrentes. Voltado a investidores qualificados, com volume de aplicações superior a R$ 1 milhão, o carro-chefe da casa serviu de inspiração, exceto pelo mix da carteira, a um fundo aberto para inversões a partir de módicos R$ 100, que já soma R$ 83 milhões e 12,3 mil cotistas.
“O CriptoMoedas Light, com 80% do portfólio em CDIs e o restante em ativos virtuais, foi a versão ‘on the rocks’ do nosso principal fundo da classe, um autêntico ‘caubói’, com 100% em criptoativos”, brinca Wachsmann. “Em agosto de 2020, decidimos trocar os CDIs da sua carteira por aplicações em metais – como ouro, prata, urânio e cobre –, que têm comportamento anticíclico em relação aos criptoativos. Ele ganhou, então, um novo nome: Cripto Metals Blend.”
A dupla formada pelo puro-sangue e o mixado “contaminou” as operações da gestora. A partir de 2020, a Vitreo começou a “temperar” seus demais fundos com doses homeopáticas de criptoativos, com alocações na faixa de 1% a 2% das carteiras, e reforçou, como vimos, a sua grade de opções com veículos de investimento mais fortemente relacionados a ativos virtuais, que soma um patrimônio ao redor de R$ 746 milhões e 59 mil cotistas. Dessa forma, os criptoativos já detêm uma participação de 8% na massa de recursos geridos pela casa, da ordem de R$ 4 bilhões, com viés de alta. “Para 2022, programamos quatro lançamentos na área: dois novos fundos e os nossos dois primeiros ETFs”, diz Wachsmann. “Até meados da década, acreditamos que os criptoativos poderão responder por algo em torno de 20% a 25% do nosso portfólio.”
Hashdex na Nasdaq
Os grandes destaques de 2021 nessa nova fronteira de investimentos, no entanto, foram a Hashdex e a QR Asset Management, responsáveis pelos lançamentos dos primeiros ETFs cripto do mercado local. A Hashdex saiu na frente, em abril, com o HASH11, atrelado ao Nasdaq Crypto Index (NCI). Desenvolvido pela bolsa eletrônica de Nova York com a colaboração, entre outras instituições, da gestora carioca, o NCI trabalha com uma cesta de oito criptoativos, entre os quais se destacam o bitcoin e o ethereum, que detêm pesos de 63,07% e 32,52% em sua composição.
“O boom do bitcoin e de outros criptoativos, a partir do final de 2020, despertou o interesse do mercado em geral”, diz João Marco Cunha, gestor de portfólio da Hashdex. “Prova disso é que investidores institucionais, entre os quais a renomada Verde Asset Management, detêm um terço das cotas do HASH11. O mercado brasileiro segue, assim, os passos do Canadá, onde aplicadores de gabarito, como fundos de pensão, realizam alocações crescentes em criptoativos.”
O timing preciso do lançamento e, claro, a primazia garantiram ao HASH11 indicadores expressivos em apenas oito meses de trajetória. Com patrimônio de R$ 2,4 bilhões, o fundo é um dos cinco ETFs mais “populares” da B3, com 120 mil cotistas. Animada pela boa recepção do mercado à novidade, a Hashdex lançou, em agosto, mais duas opções: o BITH11, referenciado no Nasdaq Bitcoin Reference Price (NQBTC); e o ETHE11, centrado na blockchain Ethereum, a principal plataforma global para aplicativos descentralizados, como NFT, Web3, DEX e DeFi. “No total, os três ETFs contam com 141 mil cotistas e patrimônio de R$ 2,7 bilhões”, diz Cunha.
Disputa cresce
Com três anos de estrada e R$ 5 bilhões sob gestão, a Hashdex é inteiramente voltada a ativos virtuais. Além do trio de ETFs, sua grade conta com mais seis fundos investidos total ou parcialmente em criptoativos. São os casos do Ouro Bitcoin Risk Parity, que destina, em média, 75% dos recursos a aplicações no metal, e de um fundo previdenciário, desenvolvido para a XP, que conta com 40% de seu volume em cotas de carteiras referenciadas no NCI. “Em 2022, nossa grade de produtos será reforçada com pelo menos três ou quatro fundos e ETFs”, diz Cunha. “A disputa no segmento cripto está esquentando: largamos em primeiro nos ETFs, mas ganhamos um competidor pouco tempo depois e outros, alguns deles de grande porte, estão a caminho.”
A QR foi das primeiras gestoras a marcar presença na área. Depois de apresentar, em 2020, três fundos 100% lastreados em criptoativos, ela voltou à carga neste ano com um produto voltado a finanças descentralizadas (DEFI), em sua segunda parceria com a Vitreo, e dois ETFs: o QTBC11 e o QETH11, que operam com bitcoins e ethereuns físicos. Lançada entre junho a agosto, a dupla, com patrimônio de R$ 447,74 milhões, já responde por 40% dos recursos geridos pela casa. “Com tratamento tributário mais vantajoso, no mercado local, e custos operacionais menores, os ETFs vêm ganhando espaço em todo o mundo, pois garantem, a longo prazo, ganhos mais expressivos do que os fundos tradicionais”, observa o diretor de investimentos Alexandre Ludolf.
Superconservador na medida do possível
Assim como Vitreo e Hashdex, a QR planeja a expansão de seu cardápio de opções ancoradas em ativos virtuais em 2022. Além de três novos ETFs, estão programados os lançamentos de dois a três fundos temáticos de gestão ativa e um de perfil previdenciário – o primeiro da gestora que abrirá espaço para aplicações convencionais, como títulos de renda fixa e ações. O cronograma, como é de praxe, será sintonizado com as tendências dos principais criptoativos, cujas cotações apresentam graus de oscilação muito superiores e mais intensos do que os do mercado acionário. “Nossos fundos, em razão disso, não ficam necessariamente 100% alocados em criptoativos. Sempre buscamos alguma proteção em ativos líquidos menos voláteis”, diz Ludolf. “Somos superconservadores, se é que isso é possível para uma asset voltada a criptoativos.”
As fortes altas do bitcoin e do ethereum – de 631,30% e 3.134,98%, respectivamente, de 1º de janeiro de 2020 a 26 de dezembro último – contribuíram, na avaliação do executivo, para a inclusão dos antes menosprezados criptoativos no leque de opções de aplicadores de maior calibre. O fator decisivo para a quebra definitiva do preconceito, no entanto, foram as políticas monetárias expansionistas adotadas pela maioria das nações, que, traduzidas em juros reais reduzidos, abriram de vez o apetite dos investidores institucionais por ativos alternativos em geral.
“Os pioneiros foram os fundos soberanos e os endowments, conhecidos como fundos patrimoniais, que começaram a abrir suas portas para os criptos há cerca de cinco anos. Foi quando o bitcoin, criado como moeda em 2009, ganhou status de criptoativo”, diz Ludolf, que considera esse processo de abertura irreversível, inclusive no Brasil. “A chegada de grandes players, em 2021, marcou a consolidação do mercado local de ativos digitais, que passou, assim, a contar com estratégias mais sofisticadas de investimento, tirando espaço dos especuladores.”
Os bons ventos que sopram no nicho permitiram também ao Mercado Bitcoin se tornar o primeiro unicórnio cripto da América Latina. A plataforma de negociação recebeu, em julho, um aporte de US$ 200 milhões do grupo japonês Softbank, que elevou a avaliação de mercado da startup para US$ 2,1 bilhões, e ganhou um reforço de US$ 50,3 milhões, em novembro, de uma dupla de investidores em private equity e venture capital. A trajetória do negócio, criado em 2013, ilustra à perfeição a formação e o desenvolvimento do mercado de moedas virtuais no país, que, segundo estimativas de especialistas do ramo, movimentou US$ 12,9 bilhões de janeiro a agosto de 2020.
De R$ 190 a R$ 290 mil
“Quando começamos, o bitcoin valia R$ 190 e havia no Brasil, se muito, duas mil pessoas que conheciam critptoativos”, assinala o CEO Reinaldo Rabelo. “Hoje, com o bitcoin por volta de R$ 290 mil, contamos com mais de 3 milhões de usuários cadastrados em nosso sistema.”
A razão social, diga-se, não se adequou à ampliação do escopo e dos volumes. Afinal, a empresa, que de início era totalmente focada em bitcoins, viabiliza atualmente transações com cerca de cem moedas e ativos virtuais em sua plataforma – 70 a mais do que há um ano. A lista, que tende a seguir crescendo, inclui de opções atreladas ao dólar (USDC) e ao ouro (PAXG) a tokens que garantem a seus detentores fatias nos valores de transferências de alguns jogadores de futebol formados pelo Vasco da Gama e o Santos, casos das estrelas Philippe Coutinho e Neymar.
“Bolei o Token Vasco para ajudar o meu clube de coração, que, no início de 2021, queria tokenizar a transferência do atacante Talles Magno para o New York City, dos Estados Unidos”, conta Rabelo. “Depois do lançamento, em novembro, do Token Santos, iniciamos conversações com times de outros polos da América do Sul e também da Europa. No mercado europeu, o interesse é grande, em especial, de clubes dos chamados países-ponte, como Portugal, Grécia e Turquia.”
Com o caixa reforçado pelas injeções recebidas nas duas rodadas de investimento concluídas nos últimos meses, o Mercado Bitcoin planeja expansões internacionais que vão muito além de localidades esportivas. Para o primeiro trimestre de 2022 está previsto o início de suas operações em quatro importantes praças da América Latina: Argentina, Chile, Colômbia e México, primeira etapa de um projeto voltado a todo o subcontinente. “O mercado latino-americano de criptomedas, ainda em desenvolvimento, deve crescer bastante nos próximos dois anos. A região tem potencial estimado de 20 milhões de usuários, o dobro do número projetado para o Brasil”, destaca Rabelo.
Também adotado pela singapurense Crypto.com, que está desembarcando no Brasil, o recurso a patrocínios e parcerias na área esportiva já se configura como uma das principais estratégias para a divulgação dos critpoativos. O desafio a ser enfrentado pelos agentes do setor, além de contemplar clubes e torcedores, é oferecer educação financeira ao grande público, uma tarefa que, considerando a complexidade dos ativos e moedas virtuais, promete ser das mais cabeludas.
“Bancos e corretoras tradicionais, que cansaram de atirar pedras sobre os criptoativos, já estão se rendendo a essa inovação. No entanto, a maioria de seus profissionais ainda não reúne conhecimentos suficientes para oferecer produtos relacionados a ativos virtuais aos investidores do segmento”, observa Bruno Diniz, sócio da consultoria Spiralem e autor do recém-lançado “A Nova Lógica Financeira” (Editora Gente). “Por sorte, o sistema tende a contar com a colaboração do governo federal, mais especificamente do Banco Central, que prepara para 2023 o lançamento do real digital. Esse projeto vai facilitar a venda de ativos e moedas digitais em geral à população.”