Daniel Cária*
O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, fez uma declaração interessante poucos dias atrás: o cartão de crédito, pelo menos no formato que conhecemos hoje, deve deixar de existir. Durante palestra em Brasília, ele disse acreditar que a modalidade de pagamento PIX garantido, por meio do celular, irá substituir, em breve, o uso de cartões. O presidente do Banco Central também estimulou bancos e fintechs a desenvolverem um aplicativo único para centralizar toda a vida financeira do usuário, sem a necessidade de entrar em vários aplicativos de bancos. Campos Neto tocou em dois pontos que, de fato, merecem considerações.
Com o sistema Open Finance (antigo Open Banking) implantado pelo Banco Central, assim como pela entrada de bancos digitais e fintechs em cena, o acesso dos brasileiros às contas bancárias e a cartões de crédito ficou muito mais fácil e, principalmente, mais barato. Segundo dados do próprio Banco Central, o número de brasileiros bancarizados subiu de 115 milhões em 2010 para 182 milhões em 2021, um aumento de quase 60%. Em comparação, a população do país cresceu, no mesmo período, em torno de 10%. E, se em 2017 tínhamos cerca de 82 milhões de cartões de crédito ativos no país, ao final de 2020 esse número já havia superado os 134 milhões. Na prática, a ação do Banco Central contribuiu positivamente para o aumento da bancarização no país e, de forma indireta, para o crescimento do uso de cartões de crédito.
Com relação aos cartões, considerando as informações que temos disponíveis hoje, acredito que, para essa modalidade pagamento ser extinta, será necessário avançarmos um pouco além do PIX Crédito. Vejamos.
Dados recentes do Serasa indicam que 47% dos brasileiros possuem quatro ou mais cartões de crédito. Não é difícil achar usuários de dez ou mais cartões. Recentemente fui procurado, nas mídias sociais, por uma pessoa que possuía, acredite, 35 cartões de crédito!
Mas por que essa necessidade de tantos cartões? A verdade é que, com as recentes mudanças no mercado de trabalho, o número de trabalhadores autônomos e microempreendedores vem crescendo de forma consistente. São pessoas com renda instável, que pode variar muito de um mês para outro. Sem serem capazes de comprovar renda mensal fixa, o limite disponível de crédito no cartão, para a maioria desses usuários, acaba sendo muito baixo. Como há no mercado oferta de cartões sem anuidade, essas pessoas optam por usar vários cartões para obter um limite adequado de crédito. Suas pequenas empresas e micronegócios, que muitas vezes se confundem com a própria pessoa física, financiam suas despesas e o fluxo de caixa com uma multiplicidade de cartões. Essa é uma das questões que o PIX garantido terá de equacionar.
O crescente uso de cartões por esse público não se baseia apenas como forma de financiamento, digamos, alternativo. Uma parte expressiva dos usuários de cartões valoriza, de fato, os programas de vantagens como pontos, milhas e cashback. Muitos deles acreditam que fazer pagamento por outra modalidade é perder dinheiro. Esse é outro ponto que o PIX garantido terá de considerar para superar o modelo dos cartões. Portanto, um novo modelo de pagamento, para substituir os cartões, deverá entender e atender esses costumes e necessidades dos usuários.
Já em relação a um aplicativo que centralize as informações financeiras das pessoas, nenhum reparo a fazer. Na prática, muita gente, em especial autônomos e microempreendedores, têm, pelo menos, duas contas em banco e muitos cartões de crédito. Por vezes, são várias contas e vários cartões emitidos por diferentes instituições financeiras. Administrar tudo isso é, por vezes, complexo, causa descontrole e gera angústia. Assim, como propõe o presidente do Banco Central, seria oportuno termos aplicativos que tenham a capacidade de agregar todas essas informações num único lugar, como forma de organizar e facilitar a vida das pessoas.
O modelo atual que obriga o usuário a acessar diversos aplicativos ou múltiplas plataformas para fazer pagamentos ou gerir sua vida financeira nos parece, de fato, com os dias contados. Hoje há tecnologia para solucionar esse problema. Graças ao Open Finance, isso vai acontecer, e não vai demorar muito. Se os grandes players do mercado não o fizerem, novas fintechs o farão.
A tecnologia está mudando nossa relação com o dinheiro, com as finanças e com as próprias instituições financeiras. Na linha do que vislumbra Campos Neto, acredito também que o futuro trará, sim, mais simplicidade, praticidade, integração e conexão. Quem não atender a essas demandas muito provavelmente ficará pelo caminho.
*CEO e sócio-fundador da Vanq