DARIO PALHARES
A crise enfrentada pela Americanas, que entrou em recuperação judicial em janeiro devido a um rombo de R$ 20 bilhões, lança uma série de interrogações sobre os rumos da Ame Digital – e das outras fintechs compradas pelo grupo. Quatro consultores ouvidos nesta reportagem – Boanerges Ramos Freire, Bruno Diniz, Danilo Nascimento e Gastão Mattos – afirmam que a fintech ia muito bem, e que estaria inclusive pronta para um spin off – mas agora tudo pode acontecer. A fintech é uma das credoras da holding, e poderia tanto ser fortalecida para ajudá-la a enfrentar a crise, quanto ser vendida.
Em comunicado enviado a Fintechs Brasil, a Americanas afirma que as operações da Ame Digital “seguem normalmente”. Mas a startup tem créditos de R$ 974,8 milhões a receber de sua problemática empresa-mãe (ver box) e, como reflexo da forte derrapada do grupo, sofreu alterações em sua cúpula, no início de fevereiro, com o afastamento da CEO Anna Christina Ramos Saicali, que ocupava o posto desde julho de 2018, e do diretor Fábio da Silva Abrate.
A Ame surgiu há cinco anos ancorada na oferta de contas digitais e cashback para consumidores dos sites Americanas.com, Submarino, Shoptime e da Lojas Americanas, e recebeu sinal verde do Banco Central, em outubro último, para atuar como instituição de pagamento (IP).
“Em janeiro, a Ame Digital manteve a sua participação nos pagamentos online: 24% em wallets – a segunda maior no segmento, atrás apenas do Paypal e no mesmo patamar do Apple Pay – e 10,2% no comércio eletrônico em geral. Só a partir das próximas semanas poderemos verificar os efeitos da recuperação judicial da Americanas sobre as operações da sua fintech”, comenta Mattos, cofundador e gerente-geral da GMattos, consultoria que realiza levantamentos bimestrais sobre negócios e meios de pagamento digitais.
A trajetória da fintech, que mereceu rasgados elogios dos quatro experts entrevistados por Fintechs Brasil, era francamente ascendente até há poucos meses. Como observa Freire, presidente da Boanerges & Cia., consultoria especializada em serviços financeiros, a empresa começou a se monetizar em escala geométrica no segundo semestre da temporada passada.
Da esquerda para a direita, de cima para baixo: Gastão Mattos/GMattos, Danilo Nascimento/PropZ, Boanerges Ramos Freire/Boanerges & Cia. e Bruno Diniz/Spiralem
Lucro milionário
“Ao divulgar seus resultados no terceiro trimestre 2022 – antes, portanto, do anúncio das chamadas ‘inconsistências contábeis’ –, a Americanas destacou o lucro líquido da Ame, que somou R$ 20,2 milhões, superando em cinco vezes o resultado do período de abril a junho”, assinala ele. “A fintech estava muito bem posicionada e atenta, executando uma estratégia relevante de agregação de valor a um varejista importante com a oferta de serviços financeiros.”
Criada para alavancar as vendas do ecossistema Americanas, a startup começou a atender outros públicos em 2020, quando também se lançou às compras, arrematando os controles da Parati, Bit Capital e Nexoos entre dezembro daquele ano e abril do ano seguinte. A expansão teve sequência em 2022, com a consolidação da plataforma de produtos e serviços financeiros (crédito para pessoas físicas, cartão de crédito, antecipação de recebíveis para empresas etc.), que passou a ostentar indicadores robustos.
Segundo o último release de resultados da Americanas, a Ame Digital contabilizava, no terceiro trimestre de 2022, 37,9 milhões de downloads de seu aplicativo, 30,5 milhões de contas (10,8 milhões a mais do que 12 meses antes), 10,1 milhões de usuários ativos mensais, 2,1 milhões de cartões de crédito emitidos e transações de R$ 32,6 bilhões, volume 49,3% superior ao registrado no período de 12 meses findo em setembro de 2021.
“O apuro agora enfrentado pela Americanas não trava tudo de uma hora para a outra, mas cria grandes obstáculos para expansão, melhorias e novos projetos da fintech. Diante do desafio da sobrevivência do grupo, a área de serviços financeiros pega a senha e vai para o fim da fila”, diz Freire. “É possível até que a Ame Digital seja vendida para reduzir os passivos da Americanas.”
Spin off ou IPO?
A hipótese não pode nem deve ser descartada. Mas, a julgar pelo pedido de recuperação judicial apresentado em 19 de janeiro à 4ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro pelo quarteto formado por Americanas S.A., B2W Digital Lux, JSM Global e ST Importações, não parece ser essa a intenção dos controladores do grupo – leia-se o trio 3G, formado por Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira – e da startup. No documento, que aponta a Ame como “um dos maiores vetores de renda do Grupo Americanas” e “peça fundamental para as operações da companhia por operacionalizar parte substancial dos pagamentos de clientes”, os controladores manifestam, inclusive, a disposição de capitalizar a fintech, “conforme as necessidades de caixa”.
A aparente disposição do conglomerado de manter a startup sob o seu guarda-chuva é endossada por Bruno Diniz, cofundador da Spiralem, consultoria especializada em inovação financeira. Em sua avaliação, se houver necessidade, a Americanas deve recorrer, preferencialmente, a outras “moedas” na área de serviços financeiros para amortizar dívidas: as três fintechs adquiridas a partir do segundo semestre de 2020.
As mais valorizadas são a Nexoos e a Parati, que receberam autorização do Banco Central para atuar como Sociedade de Empréstimo entre Pessoas (SEP) e emissora de moeda eletrônica, respectivamente, em junho de 2019 e outubro de 2020.
“A Nexoos tem tradição em credit as a service; Bit Capital e Parati são fortes em crédito e bank as a service. Talvez valha a pena ‘devolvê-las’ ao mercado”, diz Diniz, autor de “O Fenômeno Fintech” (Alta Books, 2020) e “A Nova Lógica Financeira” (Gente Autoridade, 2021).
A vocação da Ame, na visão de Mattos e Nascimento, é bem distinta. Para a dupla, a principal fintech da gigante varejista já reúne – ou, pelo menos, reunia há alguns meses – condições mais do que suficientes para alçar voo solo no mercado de capitais. “Com base nos números divulgados em setembro pela Americanas, seria absolutamente viável realizar um split e a abertura de capital da fintech”, diz Nascimento, sócio-diretor da consultoria Propz, consultoria especializada no varejo. “A Ame apresentou desempenho bem superior ao do grupo e vem expandindo seu raio de atuação por meio de parcerias com iFood e Uber em cashback.”
Vender ou não vender
A colocação à venda da fintech despertaria, claro, muito interesse em razão de seus indicadores e da autorização para operar como IP, concedida pelo Banco Central. Diniz acredita, no entanto, que, a menos que a situação da Americanas seja calamitosa, a startup será mantida na casa. “A Ame é absolutamente estratégica para as Americanas. Abrir mão dela seria um tiro no pé, já que todos os demais grandes nomes do varejo contam com braços financeiros”, diz ele.
Apesar da boa avaliação de mercado, a startup já sente os efeitos da crise vivida pela empresa-mãe. Logo após o anúncio do rombo bilionário nas Americanas, por exemplo, várias empresas instaladas no market place da varejista elevaram seus preços às nuvens para afugentar compradores, livrando-se, assim, de potenciais e cabeludos problemas com o cashback.
“Serviços financeiros dependem, acima de tudo, de confiança. Quando esse princípio sofre abalos, fica extremamente difícil manter a situação sob controle”, assinala Diniz. “É uma pena, pois a Ame Digital e o ecossistema financeiro da Americanas estavam indo muito bem.”
Dívidas e dúvidas
A nonagenária Americanas tem contas a acertar com a Ame Digital. A fintech figura entre as 20 primeiras de uma lista de 9,7 mil pessoas físicas e jurídicas que são credoras da gigante varejista, com 2,3% de um passivo total de R$ 42,5 bilhões, segundo o processo de recuperação judicial sancionado em fevereiro pela 4ª Vara Empresarial da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro. A origem da dívida quase bilionária com a startup permanece nebulosa, assim como o imbroglio em que a Americanas se meteu, pois a companhia ainda não divulgou os números do quarto trimestre de 2022 e do exercício passado. Mas o mercado já faz suas interpretações.
“A crise tem entre seus vetores um vício contábil praticado, tudo indica, há muitos anos, e o desbalanceamento entre os parcelamentos demandados pelos consumidores, a cargo da Ame Digital, e os suportados pelos vendedores instalados na plataforma de comércio virtual da Americanas, que respondem por uma fatia de quase 65% das vendas online do grupo”, comenta Gastão Mattos, da GMattos. “Desse descompasso, surge a necessidade de antecipação dos recebíveis no cartão de crédito, acarretando custos financeiros para o market place.”
A escalada da taxa Selic, que saltou de 2% para 13,75% ao ano desde março de 2021, vem forçando uma drástica redução nos prazos oferecidos pelo comércio virtual, que, há alguns anos, chegou a parcelar compras sem juros em até 12 pagamentos. Só entre novembro de 2022 e janeiro último, a GMattos detectou um encolhimento de 29,7%, de 6,4 para 4,5 vezes, no número médio de prestações no cartão de crédito oferecido por um grupo de 59 grandes lojas online.
“O corte nos prazos, acredito, ganhará intensidade após o ocorrido com a Americanas,” diz Mattos. “Até mesmo bancos e adquirentes, que vinham ganhando dinheiro com parcelamentos longos, já olham com bons olhos essa tendência. Quem não vai gostar, claro, é o consumidor.”
Não por acaso, portanto, bancos e instituições financeiras em geral lideram com folga a lista de credores da Americanas, com uma fatia de aproximadamente 70% do passivo declarado pela companhia. No caso específico da Ame Digital, especula Danilo Nascimento, duas das prováveis origens dos créditos a receber da controladora são a remuneração pelas vendas viabilizadas pela Ame, com base no critério de custo por aquisição (CPA), e as operações de cashback. “Certamente, não é a fintech que financia o cashback, e sim o market place”, observa o sócio-diretor da Propz. “A Ame vai ter de esclarecer a origem dos créditos a receber da Americanas.”