CRÉDITO

‘Novo consignado privado’ do governo é bem-vindo. Mas não totalmente...

Instituições financeiras criticam fim do saque-aniversário e teto de juros, mas a maioria elogia a centralização no Dataprev

Dinheiro, crédito
Dinheiro, crédito | Imagem: Adobe Stock

As propostas do Governo Federal para reformular o modelo de crédito consignado privado e revisar as regras do saque-aniversário do FGTS ainda não foram ao Congresso, mas já provocam reações. Alguns pontos, como a eliminação do papel dos departamentos de Recursos Humanos (RH) das empresas na contratação, são bem vistos pelo mercado financeiro. Já o fim do saque-aniversário não é, assim como o teto para os juros.

No entanto, algumas fintechs manifestam opiniões contrárias, evidenciando que o setor está longe de um consenso.

No novo modelo, o trabalhador poderá usar o saldo do FGTS e suas verbas rescisórias (em caso de demissão) como garantia do empréstimo. O limite estudado está em cerca de 10% do saldo do FGTS e 100% da multa, mas o percentual ainda está em discussão.

A contratação será somente pelo aplicativo da Carteira de Trabalho Digital, operado pelo Dataprev — como um “leilão” de crédito, pelos menores juros e melhores prazos e condições disponíveis para o trabalhador. Isso dispensará a intermediação do departamento de RH das empresas para firmar os contratos.

Adeus aos convênios

Atualmente, é o RH quem faz a ponte entre o tomador e a instituição financeira, o que abre espaço para que fintechs e bancos menores firmem convênios de exclusividade com pequenas e médias empresas (PMEs) para oferecer condições de crédito personalizadas.

O governo diz que a retirada do RH da equação permitirá que trabalhadores autônomos e empregados domésticos, que não têm RH, também consigam acessar o crédito.

Paula Martinelli, diretora da Associação Brasileira de Crédito Digital (ABCD), defende que a retirada da necessidade do RH na contratação permitirá que o produto cresça no mercado. Paula afirma que as associadas detêm cerca de 10% do market share do consignado privado. Segundo o Banco Central (BC), apenas 4,1% do crédito consignado obtido por brasileiros são para trabalhadores do setor privado, enquanto o restante fica para servidores públicos e beneficiários do INSS.

“Neste novo modelo, quem vai desempenhar esse papel [de intermediário] será o Dataprev, que tem todas as informações do eSocial, uma plataforma onde todas as empresas e empregadores podem gerenciar as informações. Com isso, o acesso ao crédito consignado privado tende a se multiplicar entre três e dez vezes”, estima Paula.

A Zetta, que representa fintechs como Nubank e PicPay, concorda. Em nota, a associação considerou a retirada do RH da intermediação como “um dos pontos positivos do projeto”, o que “deve ampliar a oferta e permitir mais concorrência no segmento”.

A ABFintechs também é a favor. Diego Perez, presidente da associação, diz que no modelo atual o trabalhador não tem “poder de escolha” e pode se sentir constrangido ao solicitar o empréstimo com o departamento. “Isso [centralização das ofertas sem o intermédio do RH] fomenta a competição, uma vez que permite que instituições financeiras alternativas possam ofertar seu serviço por meio de plataformas digitais sem estar necessariamente em convênio com as empresas”, argumenta.

Porém, o tema não está pacificado no setor. Algumas fintechs que atuam no ramo do consignado privado são contra o fim dos convênios e querem que o RH continue no novo modelo.

Controvérsia

Fabian Valverde, CEO da Paketá, defende um modelo que integre as duas frentes, combinando a atuação do RH com o acesso direto das instituições financeiras às informações do FGTS e outros dados relevantes do tomador de crédito. Segundo ele, o projeto é “um avanço importante para o mercado de crédito”, e o papel do RH é “central”.

“O RH é o elo entre os funcionários, as instituições financeiras e as fintechs, garantindo que os processos de crédito sejam transparentes e que as informações sejam corretamente transmitidas. Essa colaboração é crucial para que os trabalhadores possam aproveitar as vantagens do crédito consignado de maneira plena, sem surpresas desagradáveis no processo”, defende Fabian, da Paketá.

Sergio Furio, CEO da Creditas, concorda. Para ele, o RH atua também como “educador financeiro” e pode auxiliar o trabalhador no momento de tomar o empréstimo, mitigando riscos. “A parte positiva [do modelo atual] é que o RH está cuidando do funcionário. A negativa é que cria uma fricção no processo de originação do crédito”, defende. Para ele, o modelo ideal seria com a fintech tendo acesso às informações disponibilizadas pelo Dataprev, mas com o apoio do RH na outra ponta.

Atraso na largada

O prazo para adaptação de seus sistemas é outra dor de cabeça para as fintechs. O novo consignado privado deve funcionar pelo Dataprev, que puxará as informações financeiras do tomador com base em seu cadastro no eSocial.

As instituições que operam no consignado público — mercado dominado pelos bancões – já usam o mesmo sistema. Até o momento, não há previsão de período de transição no projeto, segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Desta forma, quando dada a largada, quem já tinha o sistema sairá na frente, enquanto as instituições menores deverão correr atrás do ‘prejuízo’.

A Zetta endossa a reivindicação por um período de transição e sugere, ainda, uma ampliação das plataformas para a realização das ofertas de empréstimo. A sugestão da associação é que as instituições possam oferecer o consignado em seus próprios aplicativos, redirecionando o cliente para o app do governo na conclusão do processo.

Fernando Perreli, CEO da BYX Capital, defende que o ideal seria que ambos os modelos operassem paralelamente durante o período de transição. “Há ainda muitas dúvidas em relação ao novo consignado. Em relação à inadimplência por demissão e à carteira de R$ 40 bilhões do modelo anterior. Esse legado será levado para o novo sistema para que não haja uma dupla averbação?”, questiona.

Unanimidades

Se, por um lado, o novo consignado privado ainda é tema de discussão entre diferentes instituições, por outro, há pelo menos duas unanimidades: o setor financeiro não quer ver o fim do saque-aniversário do FGTS nem o teto de juros.

As associações defendem que um limite na cobrança pode restringir a oferta do empréstimo. “Um teto de juros fixo tende a estimular as  instituições financeiras a escolher o público a quem ofertar crédito. Com a elevação do nível de risco, pessoas que poderiam ser as mais beneficiadas podem acabar sem acesso”, diz Paula, da ABCD.

Quanto ao saque-aniversário, implementada em 2020, ainda no governo Jair Bolsonaro (PL) como uma alternativa ao saque-rescisão, tem um senão. Os trabalhadores optantes do saque anual ficam impedidos de acessar os recursos do FGTS em casos de demissão, tendo direito apenas à multa rescisória.

Até hoje, 36,4 milhões de trabalhadores optaram pelo saque-aniversário, de acordo com a Caixa Econômica Federal, o que corresponde a 36,8% do total de trabalhadores com saldo em contas do FGTS. De 2020 para cá, os saques já somam R$ 129,5 bilhões.

Do total de optantes, 23,3 milhões de trabalhadores fizeram operações de antecipação do saque-aniversário. O total obtido antecipado já soma R$ 179 bilhões, volume maior que os saques propriamente ditos.

Negativados

O mercado não quer perder o produto, que considera importante para grupos mais vulneráveis. “É uma forma barata de acessar crédito. A modalidade tornou-se uma oportunidade muito interessante para clientes que estão endividados e negativados”, argumenta Francisco Ferreira, presidente da ABCD.

Na visão da Febraban, a linha é “um instrumento eficaz e barato de injeção de recursos na economia brasileira”. Em nota, a entidade afirmou que “a antecipação do valor do saque-aniversário é uma fonte de crédito que não compromete a renda mensal dos trabalhadores, além de possuir a taxa mais baixa entre todas as opções de empréstimo. É uma das poucas modalidades que é concedida a pessoas com nome negativado.”

Diego Perez, presidente da ABFintechs, defende que ambas as modalidades coexistam – o saque-aniversário e o novo consignado privado. “Uma modalidade não repele a outra, elas podem ser ofertadas para o trabalhador de maneira conjunta e colaborativa”, diz.

Lula não tem pressa

O ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, deu o prazo até novembro para que o projeto fosse levado ao Congresso. Porém, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) disse que pretende esperar mais alguns meses.

“Não sei se dá para fazer neste ano ainda. É importante a gente não ter pressa para fazer [o projeto de lei], para não fazer uma coisa errada. Quando a gente mandar o PL, tem que mandar uma coisa que seja plausível”, afirmou em entrevista à rádio O Povo/CBN, do Ceará, no último dia 11/10.

Enviando o projeto este ano ou não, é possível que o setor não veja nenhuma mudança efetiva por ainda mais tempo, já que a proposta precisa tramitar na Câmara dos Deputados e no Senado Federal — que ficam de recesso entre 23 de dezembro e 1º de fevereiro.