A combinação entre mudanças regulatórias, novas tecnologias e a própria evolução do mercado está permitindo o avanço de fintechs com modelos B2B (negócios entre empresas). Esse movimento é encarado por especialistas e empreendedores como uma nova fronteira no ecossistema financeiro, depois da primeira onda de soluções para o consumidor final (B2C).
Levantamentos recentes no Brasil, inclusive, dão o tom desta tendência. Por exemplo, a maioria das fintechs (64%) tem foco no B2B, conforme estudo da Associação Brasileira de Fintechs (ABFintechs) com a PwC. Esse percentual chegou a ser de 40% em 2022 e avançou para 56% no ano passado. Já de acordo com outra pesquisa da PwC, em conjunto com a Associação Brasileira de Crédito Digital (ABCD), 62% das fintechs de crédito atendem pessoas jurídicas (PJ), exclusivamente ou não.
Não à toa, são diversas e cada vez mais numerosas as fintechs que atuam, por exemplo, com crédito e pagamentos B2B. Além dos players bem estabelecidos que oferecem modalidades como antecipação de recebíveis (duplicatas e cartões) e Buy Now Pay Later (BNPL), começam a aparecer novos negócios e soluções.
São empresas que estão de olho numa oportunidade trilionária. De acordo com o Goldman Sachs, globalmente o comércio entre empresas movimenta 10 vezes mais do que o mercado B2C. A previsão do banco norte-americano é que o B2B ultrapasse US$ 200 trilhões até 2028.
Cartão de crédito B2B
Originada na Kobold, gestora de fundos com 30 anos de expertise em crédito B2B, a Kob lançou em abril deste ano o seu “cartão de crédito virtual” com foco no B2B, num modelo costurado em conjunto com a Visa. A solução, que está em desenvolvimento desde 2020, mira grandes empresas de diferentes setores da economia, incluindo papel e celulose, cimento, eletroeletrônicos e outros. Atualmente, a Kob negocia com 40 companhias. Parte delas já vem fazendo pilotos, e outras estão se integrando à plataforma, conta Fernando Ribeiro, CEO e fundador da Kob e da Kobold.
“Fizemos um arranjo que ainda não existe em lugar algum no mundo”, diz ele. “O que construímos é um meio de pagamento que não é uma operação financeira e tem a garantia do recebimento. Adaptamos o desenho do cartão de crédito para o mundo das empresas”, explica.
De acordo com Fernando, a experiência é fluida e simples tanto para quem vende, quanto para quem compra. A solução é também mais barata em comparação com outros modelos conhecidos no mercado B2B, como o risco sacado. O custo para as empresas que vendem é fixo, de 0,8% por transação, independentemente do prazo, informa Fernando. “Caso comprador não consiga pagar, aí começa uma operação financeira, com taxa de 3% ao mês. Temos um FIDC [Fundo de Investimento em Direitos Creditórios] como funding para esse ‘não pagamentos’.”
Ao contrário do cartão de crédito que usamos no dia a dia, as transações com a Kob não partem de quem está comprando, mas sim das empresas vendedoras. São elas que habilitam seus compradores em uma espécie de “maquininha” online. Não há plástico envolvido, e tudo ocorre em um ambiente 100% digital. A Kob faz o papel de emissor do cartão com a bandeira Visa.
“A empresa vendedora fornece dados históricos de relacionamento com seus clientes. Rodamos nossos algoritmos e devolvemos a eles com nossos limites. Não alteramos as relações comerciais já estabelecidas”, explica Fernando. “Também temos feito um trabalho de educação e aculturamento nas empresas porque é um modelo novo ter o mundo da adquirência, do credenciamento, no B2B.”
“Boleto seguro”
Quem também busca desbravar o crédito B2B é a Kapitale, que mira as pequenas e médias empresas (PMEs). Lançada há cerca de um ano, a fintech fez mais de 100 operações para testar sua solução de antecipação de recebíveis de cartão de crédito, que conecta indústrias e varejistas. Agora, com a captação de um FIDC de R$ 50 milhões, a empresa está rodando o piloto de um novo produto, que batizou de “Boleto Seguro”.
Conforme explica Anderson Pereira, CEO e co-fundador da Kapitale, a solução funciona tanto com o bloqueio automático de recebíveis performados a cada emissão de duplicata, quanto com o bloqueio dos recebíveis apenas após o não pagamento. No primeiro caso, diz o CEO, o sistema oferece mais segurança aos fornecedores, mas também bloqueia a movimentação do valor correspondente do varejo na data da venda. Já a segunda opção oferece menos segurança ao fornecedor, porém dá mais liberdade ao varejo para utilização dos seus recebíveis.
“Nossa receita neste produto é principalmente transacional, uma porcentagem do volume segurado. Mas é importante por não depender da execução do FIDC e também ofertar uma solução alternativa àqueles clientes que optarem por não comprometer os recebíveis como pagamento”, diz Anderson.
De acordo com o CEO, nesta etapa de piloto, a solução estará disponível para mais de 6 mil pontos de venda, como farmácias e lojas de cosméticos no Estado do Rio de Janeiro. “Para isso, fizemos uma parceria com distribuidores locais”, afirma. A expectativa é transacionar R$ 43 milhões em 2025, prevê Anderson. Segundo ele, o produto deve responde por metade das operações da Kapitale no ano que vem. “O mercado já está acostumado a transacionar com boleto.”
Para se diferenciar, a Kapitale aposta na especialização em segmentos “não tão óbvios”, com capilaridade e onde a penetração ainda não é grande. São, por exemplo, saúde e cosméticos, cita Anderson. “Existem centenas de milhares de farmácias e pontos de venda de cosméticos no Brasil”, diz o CEO. “Estamos começamos por esses segmentos, mas não significa que estamos fechados para outros”, ressalta.
O fundador afirma, ainda, que outro atributo da Kapitale perante à concorrência é o funding próprio e o fato de a empresa assumir o risco de crédito. “Não somos uma infraestrutura”, diz. E como todo empreendedor que procura vender bem seu peixe, outro argumento dele é o nível de atendimento construído pela fintech. “Queremos entregar a melhor experiência do usuário possível, com poucos cliques, mas mantendo a validação de identidade para garantir a segurança.”
A Kapitale chegou a ser montada por Anderson em 2014, mas ele teve que fechá-la dois anos depois porque o contexto regulatório não era tão favorável como é hoje para o modelo de negócio. “As registradoras ainda não existiam. Nossa plataforma funcionava como o Guiabolso, ou seja, com os acessos concedidos pelas empresas, o sistema lia a agenda de recebíveis por meio de scraper [uma espécie de robô de rastreamento]”, conta.
Com o projeto engavetado, então, Anderson foi trabalhar na área de inovação do Santander. Depois, assumiu como CEO da Universia Brasil, empresa do grupo. Lá ele ficou até 2022, quando decidiu tirar um sabático e foi estudar no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Durante a tese de mestrado, que estudou as assimetrias e oportunidades do mercado de crédito para PMEs no Brasil, ele retomou a ideia da Kapitale.
De lá pra cá, a ideia ganhou corpo, virou negócio e foi destaque em um programa de aceleração da Harvard Business School. “Aproveitamos o hype da participação no programa e conseguimos levantar uma rodada seed de US$ 1,1 milhão. Assim, fomos fazendo rollout e ajustando o produto. Até que agora colocamos de pé o primeiro FIDC”, diz.