DÉBITOS

Mercado de cessão de crédito avança no Brasil

De 2019 para 2024, o número de empresas que venderam carteiras com dívidas cresceu cinco vezes, diz novo CEO da Recovery

Dívidas
Dívidas | Imagem: Canva

Durante 2024, o mercado que transaciona carteiras inadimplentes, globalmente conhecido como Non Performing Loans (NPLs), continuou crescendo no Brasil. O avanço, que se materializou em números, é reflexo de uma mudança de cultura. Mais empresas estão participando do mercado de venda de ativos de crédito.

Embora ainda estejamos longe do patamar já alcançado pelos mercados da América do Norte e da Europa, o Brasil avançou passos relevantes nos últimos cinco anos. O espaço entre os anos de 2019 e 2024 marca claramente uma mudança significativa no entendimento das empresas sobre o negócio que envolve a venda de carteiras de dívidas em atraso.

O setor representa uma operação que capta recursos financeiros para retroalimentar a indústria de crédito. Seu desenvolvimento traz liquidez para as empresas e facilita o processo para o devedor poder limpar seu nome e aumentar suas chances de voltar a ter crédito na praça. A negociação das carteiras inadimplentes funciona como um azeite nas engrenagens do crédito, porque o credor que tem uma carteira estacionada ganha a oportunidade de gerar funding para investimentos no seu próprio negócio.

Uma das principais mudanças sedimentadas dos últimos cinco anos está na quantidade e no perfil de empresas que acessam esse mercado para vender suas carteiras inadimplentes. Até 2019, esse mercado tinha um volume de carteiras em atraso transacionado de R$ 38 bilhões, com 16 cedentes. Naquele momento, a maior parte do total transacionado (84%) ficou concentrado em transações realizadas por três grandes bancos. Porém, em 2024, o mercado de NPLs no Brasil envolveu 81 empresas, e o percentual das operações realizadas pelos grandes bancos diminuiu para 37%.

Bruno Russo Franco/Recovery | Imagem: reprodução/LinkedIn

Isso diz muito sobre a sofisticação do processo de venda de ativos de crédito no mercado brasileiro. Os grandes bancos deixaram de ser os protagonistas desse jogo a partir do momento em que outras instituições financeiras, como bancos digitais e cooperativas, além de varejistas, aumentam suas participações na venda de carteiras de dívidas.

Diversificação

Há cinco anos, por exemplo, o volume de transações com ativos de crédito originadas em instituições financeiras e cooperativas somava 10% do total transacionado. Em 2024, eles correspondem a 37% do total de transações. Além do volume transacionado, houve uma expansão na quantidade de cedentes. Em 2019, apenas quatro instituições financeiras e bancos de menor porte negociaram seus ativos de crédito no setor. Em 2024, esse número passou para 37.

Outra mudança significativa veio do varejo, que passou de uma participação de apenas 5% em 2019 para 26% em 2024. Com isso, as empresas de varejo que participavam desse setor eram nove em 2019 e, agora, são 40.

Essa grande diversificação dos cedentes das carteiras em atraso claramente fez o mercado ganhar uma nova configuração. O tipo de crédito negociado também está diferente. Um exemplo são as carteiras com veículos como garantia de crédito, que ganharam um protagonismo neste mercado. Em 2020, o volume dessas carteiras atingiu R$ 965 milhões, subindo para R$ 4 bilhões em 2024.

Outra transformação importante é marcada pela participação das cooperativas. Trata-se de um mercado que exige muito trabalho para se desenvolver. Em 2019, o volume de créditos cedidos em carteiras de cooperativas somou R$ 76 milhões. Já em 2024, o montante vendido pelas cooperativas atingiu R$ 185 milhões.  

Embora possa parecer modesto quando se olha para o estoque de crédito das cooperativas, este representa um salto muito grande. É um mercado com potencial de crescer muito mais em 2025. Isso porque as engrenagens de crédito estão começando a girar nesse segmento. As cooperativas estão mais propensas e abertas a esse mercado, aprenderam a fazer cessões de crédito e sentiram os benefícios dessas operações.

Idade das carteiras

Os bancos digitais aceleraram o amadurecimento do mercado de NPL e a participação deles neste mercado aumenta a cada ano. E como essas instituições financeiras digitais nascem mais leves, sem estruturas robustas de cobrança, o prazo para venda da carteira diminui. Carteiras com até 12 meses de atraso já são vendidas pelos bancos digitais com mais facilidade.

aging é um fator relevante, não apenas em instituições financeiras digitais. Em 2019, a média de atraso das carteiras negociadas estava em torno de cinco anos. Agora observamos que o mercado, de um modo geral, incluindo o varejo, já está predisposto a negociar carteiras com dívidas mais recentes. O atraso médio passou de cinco anos para dois anos e meio. Ou seja, é uma mudança bastante relevante.

A lógica por trás desse movimento é interessante. No passado, quando o mercado nacional era pouco desenvolvido, o vendedor relutava em se desfazer da carteira, mesmo as que estavam estacionadas no balanço. Havia, então, a crença de que o departamento de cobrança interno resolveria o problema.

Atualmente, com a digitalização, as empresas passaram a olhar o ativo crédito de forma diferente e estão mais focadas no coração do negócio, o que facilita a negociação de carteiras mais jovens. Vão focar no core business de concessão de crédito e, assim, trabalhar os clientes ativos.

Além disso, há uma mudança cultural sobre a compreensão de que dívidas judicializadas podem ser negociadas. O mercado brasileiro ainda avança com relação à inserção de pequenas e médias empresas como cedente de carteiras em atraso. Nos mercados mais maduros, como a América do Norte e a Europa, a venda desse tipo de ativo já se acomodou e tende a crescer. Aqui há uma jornada a ser explorada.

Regulação e cenário macro

Mudanças regulatórias também estão favorecendo a venda de carteiras inadimplentes. Em julho deste ano, com a publicação da Lei Complementar nº 208, houve uma alteração relevante na participação do governo nesse setor. 

União, Distrito Federal, Estados e Municípios podem ceder direitos originados de créditos tributários e não tributários. Na prática, isso significa que dívidas de IPTU e IPVA, por exemplo, poderão ser negociadas. Isso abre espaço para um mercado com oportunidades acima de R$ 1 trilhão. Ainda há desafios legais e um maior entendimento quanto ao modelo que será aplicado nessa venda.

O cenário macroeconômico em 2025 e 2026 promete avanços maiores na negociação de ativos de crédito no País. Com a escalada da taxa básica de juros (a Selic), pressionada pelo aumento da inflação, acredito que teremos um cenário de mais endividamento, tanto para pessoa jurídica quanto para pessoa física. A inadimplência deverá ser maior e os credores poderão ter mais dificuldades.

Nesse ambiente mais desafiador, a predisposição para a venda das carteiras inadimplentes tende a crescer e amadurecer. Pelo lado dos credores, será uma oportunidade de trazer recursos financeiros em curto prazo para suas respectivas operações e manter a concessão de crédito.

Tecnologia e personalização

Para os devedores, o mercado de venda de ativos de crédito traz mais liberdade para a negociação de dívidas. Essa transformação se deve, em grande parte, ao amadurecimento das empresas especializadas em cobranças que estão investindo em tecnologia e ampliando as opções para os clientes. Há uma pluralidade de canais para estabelecer a negociação. Outro fator que tem estimulado a quitação de dívidas é a implementação de políticas de descontos adequadas ao momento de vida de cada cliente. O digital aumenta o poder da negociação mais amigável.

O investimento em tecnologia e a personalização desse ambiente criam condições mais favoráveis para que as pessoas físicas recuperem sua saúde financeira e, consequentemente, o apetite para tomar mais crédito. Essa dinâmica possibilita que o mercado se retroalimente. Quando mais pessoas estão aptas a tomar mais crédito, todo mundo ganha: clientes, empresas e, sobretudo, a economia.

*CEO da Recovery, empresa do grupo Itaú especializada em compra e gestão de créditos inadimplentes