
O Decreto nº 12.712, publicado no último dia 11/11/2025, redesenha o ambiente regulatório do Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT). O texto altera o Decreto nº 10.854/2021 e alinha suas regras à Lei nº 14.442/2022. Na prática, o decreto deixa de tratar apenas de incentivos fiscais e questões trabalhistas. Passa a interferir diretamente no ecossistema de pagamentos do PAT, ao estabelecer parâmetros para arranjos, tarifas, prazos e modelos de negócio. Emissores de vale-refeição (VR) e vale-alimentação (VA), credenciadoras, facilitadoras, bandeiras especializadas e fintechs passam a operar em um segmento com regras específicas dentro do mercado de meios de pagamento.
O decreto parte da distinção já conhecida entre arranjos abertos e fechados. E introduz um ponto de corte relevante: arranjos que atendam a mais de 500 mil trabalhadores deverão, obrigatoriamente, ser abertos em até 180 dias. Portanto, ficam vedadas cláusulas de exclusividade. Em termos estratégicos, isso pressiona estruturas verticalizadas a rever governança e contratos. Além disso, abre espaço, ao menos em tese, para novos participantes.
Outro eixo central é a interoperabilidade. Os arranjos do PAT deverão compartilhar a rede credenciada de estabelecimentos, vedando-se tratamento diferenciado entre transações de participantes distintos, ainda que vinculados a arranjos diferentes. A mensagem é que o credenciamento não deve funcionar como barreira para a aceitação de cartões e saldos do PAT. O texto, porém, não especifica padrão técnico, modelo de liquidação entre arranjos ou critérios mínimos de acesso e monitoramento. Essa arquitetura operacional foi remetida ao Comitê Gestor Interministerial do PAT, ainda a ser instituído.
Tarifas e liquidação das transações
No plano econômico, o decreto fixa um teto para a remuneração das transações de VR e VA no âmbito do PAT. A taxa de desconto cobrada dos estabelecimentos (MDR, na sigla em inglês) passa a ter limite de 3,6% por transação. Já a tarifa de intercâmbio devida pela credenciadora à emissora não poderá superar 2%, sendo vedada a cobrança de qualquer outra taxa, tarifa, encargo ou despesa adicional nas transações que envolvam emissora PAT, credenciadora PAT e estabelecimentos.
Em outras palavras, a monetização diretamente vinculada à transação precisa caber integralmente dentro da combinação “MDR + intercâmbio”. O texto do decreto não regula o mercado de pagamentos como um todo. Mas define condições econômicas para quem deseja operar dentro de um programa estatal com benefício fiscal, assumindo um papel direto na formação de preços em um nicho relevante, com potencial impacto sobre a liberdade de organização dos modelos de negócio.
A liquidação das transações aos estabelecimentos deve ocorrer em até 15 dias corridos, contados da data da compra. O mercado terá 90 dias para ajustar a maior parte dos contratos e 360 dias para adaptar operações com estados, Distrito Federal e municípios. Para credenciadoras e bandeiras especializadas, isso significa encurtar ciclos de repasse e revisar soluções de funding e de antecipação. Para arranjos de menor porte, a combinação de tetos de tarifas, encurtamento de prazo de repasse e interoperabilidade plena em até 360 dias pode, na prática, tornar economicamente inviável a continuidade de determinados modelos.
O decreto também ajusta o relacionamento com as empresas beneficiárias do PAT e o desenho dos produtos. Nos contratos entre facilitadoras e empregadores ficam proibidos deságios e descontos sobre o valor contratado, prazos de repasse incompatíveis com a natureza pré-paga do benefício, assim como benefícios financeiros que não guardem vínculo direto com a alimentação do trabalhador. Isso limita, então, modelos baseados em rebates ao empregador.
Além disso, o texto reforça que o PAT não deve funcionar como guarda-chuva para outros tipos de benefícios. Dessa forma, fica vedada a vinculação do programa a serviços como academias, planos de saúde, cursos, crédito e outros produtos que não se relacionem diretamente com alimentação e segurança alimentar. Para fintechs e plataformas de benefícios flexíveis, a vedação à vinculação do PAT a vantagens não alimentares indica, na prática, a necessidade de que o saldo destinado à alimentação seja identificado e segregado de outros saldos, de forma jurídica e operacional.

Pontos de atenção
Um ponto sensível é a aplicação homogênea dessas exigências a arranjos fechados de menor porte. O decreto não distingue grandes arranjos nacionais de esquemas regionais com base restrita e operação concentrada em poucas cidades. Arranjos fechados que atendem poucos empregadores e estabelecimentos passam a estar sujeitos à mesma combinação de interoperabilidade obrigatória, tetos de MDR e intercâmbio, proibição de cobranças adicionais e liquidação em 15 dias. Para muitos desses modelos, construídos sobre margens maiores, prazos mais longos e infraestrutura própria, o custo relativo de adaptação tende a ser mais alto. Em alguns casos, pode comprometer a própria viabilidade econômica.
Essas escolhas regulatórias deixam claro que o decreto não esgota o desenho técnico da regulação de arranjos vinculados ao PAT. Questões cruciais como critérios mínimos de participação, regras de acesso e desligamento de credenciadoras e emissores, padrão de governança dos arranjos, mecanismos de monitoramento de riscos e modelo detalhado de interoperabilidade permanecem em aberto e foram remetidas ao Comitê Gestor Interministerial.
Para o mercado de meios de pagamento, o recado é claro, mas longe de confortável: inaugura-se uma fase de maior padronização e contenção de custos no PAT, com tetos de preço e prazos agressivos, porém com pouco detalhamento técnico sobre como os arranjos devem operar.
Nesse contexto, a agenda do setor não é apenas cumprir o decreto, mas disputar a interpretação e o preenchimento das lacunas. Isso significa ajustar contratos, tecnologia e modelos de negócio enquanto participa do debate regulatório, sob pena de ver um marco concebido para ampliar eficiência e competição acabar inviabilizando modelos economicamente sustentáveis, acelerando a concentração e elevando a insegurança jurídica em um nicho em que previsibilidade regulatória é decisiva para investir e permanecer no mercado.
*Sócio do Barcellos Tucunduva Advogados/BTLaw, nas áreas de meios de pagamento e fintechs