Dario Palhares
Durante sete anos, a Prefeitura de Maricá, no Rio de Janeiro, foi a única do país, e do mundo, a contar com uma moeda social e um banco municipal próprios. Foi só a partir de 2020, com a eclosão da pandemia da Covid-19, que os poderes Executivos de outras sete cidades – as fluminenses Itaboraí, Saquarema, Iguaba Grande e Porciúncula, além de outras três – recorreram a essas ferramentas para operar programas de distribuição de renda e de apoio às populações e economias locais. Desde então, o interesse só aumenta: diversas outras localidades se preparam para seguir o exemplo, casos de duas capitais, Recife e Maceió, Diadema (SP), Petrópolis (RJ), Quissamã (RJ), Macaé (RJ), Teófilo Otoni (MG) e Linhares (ES).
“A expectativa, já para o próximo ano, é de um crescimento por volta de 400% no total de bancos e moedas sociais municipais”, prevê João Joaquim de Melo Neto, fundador e coordenador da Rede Brasileira de Bancos Comunitários (RBBC) e da plataforma digital E-Dinheiro, que atende a RBBC. “Muitas cidades sonham repetir os feitos de Maricá e Niterói, que, no auge da pandemia, registraram crescimento do emprego formal, na contramão do que ocorria no restante do Brasil.”
Criada em 2006, a RBBC ostenta números expressivos. Composta por 152 bancos comunitários, inclusive as oito instituições municipais, ela garantiu, em 2021, a liberação de créditos de R$ 50 milhões para 30 mil micro e pequenos empreendimentos. Sua clientela, em expansão, soma 225 mil usuários e 22 mil estabelecimentos que aceitam as moedas sociais. “A vantagem para o varejista é que ele não precisa recorrer a maquininhas. Basta usar o aplicativo da e-dinheiro”, diz Melo. “Cobramos apenas uma taxa de 2% a cada operação, para a manutenção da plataforma”.
O pacote para comerciantes inclui ainda contas digitais, cobranças, emissões de boletos e de notas fiscais eletrônicas, e transferências gratuitas. Já os correntistas pessoas físicas dispõem, entre outros produtos e serviços a custo zero, de contas digitais, transferências, cobranças (até 30 por mês) e recebimentos (até cem mensais). Desde julho, esses correntistas podem também carregar suas contas com transferências por Pix de “mão única” – somente de reais para moedas sociais municipais. “Essa solução atende a pedidos das prefeituras, que querem impulsionar a circulação de moedas sociais, desestimulando a sua reconversão em reais”, observa Melo.
Conhecido como “Joaquim do Palmas”, Melo é um dos maiores expoentes do universo nacional da economia solidária. Seu nome de guerra faz referência ao primeiro banco comunitário brasileiro, o Palmas, surgido em 1998 no Conjunto Palmeiras, em Fortaleza. Localizado no sul da capital cearense, o bairro, hoje com 32 mil habitantes, começou a ser formado no início da década de 1970 com a chegada de famílias de pescadores, que haviam sido despejadas de praias da cidade. Ignorada pelas autoridades, a comunidade começou a se organizar a partir dos anos 1980 e construiu com as próprias mãos, em regime de mutirão, a infraestrutura do local.
“Quando o Conjunto Palmeiras começou a ter cara de bairro, na década de 1990, veio a especulação imobiliária, que provocou a partida de moradores originais”, conta Melo. “A resposta da comunidade foi o projeto de geração de renda, com a criação da moeda social Palmas.”
A proposta ganhou escala a partir de 2003 graças ao apoio da Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes) do Ministério do Trabalho e do Emprego. Comandada durante 13 anos pelo economista Paul Singer (1932-2018), a Senaes liberou recursos para a capacitação de empreendimentos do gênero e o desenvolvimento de tecnologias. O empurrão que faltava foi dado em 2013 pela Lei 12.865 e a Resolução 4.282 do Banco Central, que viabilizou o surgimento do Banco Mumbuca, no mesmo ano, e da plataforma e-dinheiro, em 2014. “De início, a plataforma era tocada por uma administradora de cartões. Há seis anos, a RBBC assumiu o controle da operação, por meio do Banco Palmas, com recursos do BNDES”, conta Melo.
Na avaliação do líder comunitário, os bancos digitais e as moedas sociais municipais são um fenômeno sem volta. Por conta das perspectivas de expansão, ele considera que já é necessário garantir a essas instituições de viés popular um status mais nobre do que o de meros arranjos de pagamento pré-pagos de uso restrito. Com esse intuito, o comando da RBBC elabora um projeto de lei de um marco regulatório para o segmento e contará com a colaboração, na divulgação do texto, da Associação Brasileira de Municípios (ABM), que congrega cerca de 300 prefeituras de cidades de médio porte. “Já estamos estudando a abordagem, a partir do próximo ano, de deputados federais e senadores”, conta Eduardo Tadeu Pereira, secretário-executivo da ABM.
Prefeito de Várzea Paulista (SP) por dois mandatos consecutivos (2005-2012), Pereira pretende, claro, contar, no trabalho de convencimento dos parlamentares, com o apoio dos municípios que implantaram projetos de economia solidária. O grupo, prevê, só tende a crescer. “Muitas prefeituras só aguardam aprovações crescentes dos bancos municipais por órgãos de fiscalização, como tribunais de contas, para abraçar de vez a ideia”, diz ele. “A proposta, sem dúvida, é excelente para os municípios em geral, especialmente para cidades periféricas.”