O governo, mais uma vez, se comprometeu a dar uma solução para a rasa concorrência que caracteriza o Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT), de 1976. Até agora, os trabalhadores continuam sem poder escolher o estabelecimento onde utilizar o voucher, e os varejistas sem poder concentrar o pagamento na credenciadora de sua instituição de pagamento (IP). Isso, ainda que haja legislação de 2022 e 2023 especificamente editadas para garantir o direito de escolha de trabalhadores e varejistas.
O problema, como se viu no painel “Mercado de Vouchers: Interoperabilidade e Concorrência” do 3º Congresso da Abipag, dia 20 de junho, não está na legislação e sim no seu cumprimento. Ou melhor, no seu enforcement. Em outras palavras: no órgão ou nos órgãos responsáveis por fazer com a lei seja cumprida pelas empresas de vale refeição. Quem admitiu foi o próprio coordenador-geral de Regulação do Sistema Financeiro do Ministério da Fazenda, Emmanuel Sousa de Abreu.
“A indicação para a equipe técnica foi fechar todas as propostas até março. O governo pretende endereçar muito provavelmente ainda este ano, mas sem prazo”, informou Emmanuel. Segundo o subsecretário, já há o consenso de que os pilares da regulamentação incluirão os princípios de redução de custos para os fornecedores e o aumento da renda para os empregados. “A questão é como”, ressalvou.
Ele defendeu a demora detalhando a complexidade do trabalho de regulamentação no âmbito do governo. A começar do encaminhamento do problema, no início deste ano, para a Secretaria de Reforma Econômica, que tem duas instâncias para lidar com ele. Uma trata da concorrência do ponto de vista econômico e política. A outra tem um viés mais prudencial da concorrência.
“Então, só no âmbito da Secretaria de Reforma, você já tem dois vieses”, frisou Emmanuel, para em seguida advertir que o vale-refeição integra uma política pública, o que impede tratá-lo somente como um meio de pagamento. Além disso, o PAT tem benefícios fiscais, incentivos que abrangem tanto pessoas físicas quanto jurídicas. A diversidade de órgãos e de visões de políticas públicas, somadas aos diferentes entendimentos dos vários atores envolvidos – de trabalhadores a empresas de vale-refeição, passando pelos varejistas e setor financeiro – dificulta o trabalho do regulador, disse Emmanuel.
Mas, acima disso, há o problema do fazer cumprir a lei. “Tanto o Ministério do Trabalho, quanto o Banco Central, quanto a Receita Federal e o próprio CADE, com os quais nós conversamos, têm dificuldades materiais para execução e acabam priorizando outras atividades, que não especificamente essa política pública”, afirmou o subsecretário da Fazenda. Segundo relatou, o ministério recebeu “pelo menos sete propostas” diferentes de regulamentação vindas das diversas entidades interessadas no tema.
Repisando o aspecto da complexidade, Emmanuel indagou: “Quem define o que é um arranjo aberto? E quem é que diz se as normas são de exclusividade ou não? Ou se as de possibilidade de interoperabilidade estão sendo feitas ou não? Então essa é grande dificuldade que o ministério está tendo para formular e definir como é que vai ocorrer essa regulamentação”.
Ele defendeu que já existe uma abertura para a concorrência, que não era possível anteriormente. No entanto, ele acredita que pouco a pouco as empresas hoje dominantes irão perdendo sua prevalência. E o Ministério já tem sobre a mesa todas as propostas possíveis de interoperabilidade. Portanto, agora resta a questão política de “acertar entre os agentes”. Ele admitiu a possibilidade de o governo obrigar a interoperabilidade pelo menos entre as maiores empresas.
“Tem mais de 400 empresas de vale-refeição atuando no país. Entretanto, por incrível que pareça ele é um setor de baixa competitividade porque quatro empresas dominam entre 85% e 90% desse mercado”, descreveu Henrique Lian, diretor executivo da Euroconsumers.
Ele apontou dois instrumentos que podem desatar um nó que nem os ministérios do Trabalho e da Fazenda, nem o Banco Central, desatam: a portabilidade. Segundo Henrique, isso contribuiria para desfazer os entendimentos entre empresas de alimentação e empregadores. Para ele, somente a interoperabilidade possibilitaria às companhias alijadas da concorrência pelo virtual oligopólio competir em pé de igualdade com as quatro grandes. Hoje, com as taxas de 7% que o consumidor acaba pagando “o vale-alimentação dura 11 dias e não 30”.
Henrique recordou que um Decreto Lei de agosto do ano passado estabeleceu claramente que a portabilidade tem que ser operacionalizada por instruções do Ministério do Trabalho e Emprego.
“O Ministério, no entanto, se declara incompetente; não do ponto de vista jurisdicional, mas técnico, para essa operacionalização”, assinalou. “E, até agora nem a Fazenda e nem o Banco Central se propuseram a assumir esta tarefa ou ajudar o Ministério do Trabalho. Como resultado, isso está no limbo. Já no caso da interoperabilidade, o mesmo decreto atribuiu ao Conselho Monetário Nacional (CMN) sua regulamentação para os vales refeição”, acrescentou.
Henrique, após ouvir toda a peroração do subsecretário, perguntou como o problema poderia ficar pior do que já é com a ausência da regulamentação: “É o governo perder a chance de regular mais ou menos para regular muito bem, e deixar um juiz ou juíza de primeira instância acabar regulando; é assim que pode ficar pior”, respondeu.
*O jornalista viajou a Brasília a convite da Abipag.