
O mercado de crédito brasileiro construiu, ao longo de décadas, uma assimetria preocupante: quase R$ 100 bilhões circulam anualmente em cheque especial e rotativo de cartão, produtos com taxas que frequentemente ultrapassam 200% ao ano. Em contraste, o crédito com garantia de imóvel (home equity) movimentou apenas R$ 10 bilhões em 2024, oferecendo taxas entre 18% e 22% ao ano. Essa discrepância não reflete apenas uma falha de mercado, mas uma oportunidade histórica de transformação que já começou a se materializar.
A história recente do crédito imobiliário no Brasil oferece o roteiro do que está por vir. No início dos anos 2000, o financiamento para aquisição de imóveis movimentava entre R$ 2 bilhões e R$ 5 bilhões anuais. Com a consolidação da alienação fiduciária como instrumento de garantia e o avanço da segurança jurídica, esse mercado explodiu para mais de R$ 220 bilhões em 2024. O home equity está no exato ponto de inflexão em que o crédito imobiliário estava há 20 anos. E três fatores estruturais convergem para acelerar seu crescimento: regulação, tecnologia e educação financeira.
Regulação, tecnologia e educação financeira
O Marco Legal das Garantias, implementado a partir de 2025, representa o primeiro catalisador dessa transformação. Ao permitir a segunda alienação fiduciária sobre o mesmo imóvel e desjudicializar parte do processo de retomada, a nova legislação libera o potencial de alavancagem de milhões de imóveis que estavam juridicamente travados.
Por exemplo, um proprietário com financiamento residual de R$ 100 mil em um imóvel avaliado em R$ 1 milhão pode agora acessar até R$ 500 mil adicionais em crédito garantido. Recentemente, era algo juridicamente impossível. Essa mudança regulatória replica, em essência, o marco das garantias que impulsionou o home equity nos Estados Unidos a partir da década de 1980. Lá, o mercado saltou de volumes residuais para uma carteira superior a US$ 1 trilhão em duas décadas.
A tecnologia surge como o segundo pilar dessa revolução. Modelos automatizados de avaliação imobiliária (AVMs), integração digital com cartórios e uso de Inteligência Artificial (IA) na análise de crédito estão reduzindo drasticamente o tempo de processamento das operações. O que tradicionalmente levava dois meses pode hoje ser concluído em dias. Essa velocidade é fundamental porque o tomador de home equity busca liquidez para resolver necessidades prementes: quitar dívidas caras, custear tratamentos médicos, financiar educação ou investir em negócios. A fricção temporal era, até agora, um dos principais inibidores da demanda.

O terceiro fator, e talvez o mais estrutural, é a crescente educação financeira da população brasileira. Após anos sofrendo com o efeito “bola de neve” das dívidas de curto prazo, cada vez mais brasileiros compreendem a diferença entre pagar 200% ao ano no rotativo e 20% ao ano em um empréstimo garantido. Essa alfabetização financeira está criando demanda ativa por produtos que, historicamente, exigiam oferta agressiva dos bancos. O consumidor endividado que descobre poder trocar R$ 40 mil em dívidas de cartão por um empréstimo de R$ 50 mil pagando R$ 550 reais em vez de R$ 3 mil está protagonizando sua própria reestruturação financeira.
Desconhecimento
Apesar desse potencial evidente, o principal entrave permanece sendo o desconhecimento. Enquanto se oferece o cheque especial automaticamente há décadas, tornando-se parte do vocabulário financeiro nacional, o home equity ainda opera na penumbra informacional. Os grandes bancos começaram a ofertar o produto com escala apenas nos últimos três ou quatro anos. Esse gap de divulgação precisa ser atacado não apenas com publicidade tradicional, mas com estratégias de embedded finance que entreguem a solução no contexto das necessidades específicas: financiamento educacional para famílias com filhos em faculdades de medicina, crédito para reforma arquitetônica, capital de giro para pequenos empresários. A popularização virá quando o produto deixar de ser vendido como “home equity” e passar a ser oferecido como solução contextual para problemas concretos.
Os números internacionais dimensionam o potencial brasileiro. Em países desenvolvidos da Europa e nos Estados Unidos, o estoque de crédito imobiliário e home equity supera 100% do PIB. No Brasil, mal alcançamos 10%. Mesmo desconsiderando as diferenças estruturais entre as economias, é razoável projetar que o Brasil possa atingir 30% a 40% do PIB em crédito garantido por imóveis nas próximas décadas. Isso significaria um mercado de home equity beirando R$ 100 bilhões em sete a oito anos, partindo dos atuais R$ 10 bilhões. Embora agressivo, seria um crescimento conservador quando comparado à trajetória do financiamento imobiliário.
A consolidação do home equity como produto de massa não será apenas uma vitória do sistema financeiro. Será um instrumento de reorganização econômica das famílias brasileiras. Atualmente, 75% da população está endividada, grande parte com imóveis que poderiam ser mobilizados para zerar dívidas de três dígitos anuais.
Transformar patrimônio imobilizado em liquidez estruturada, com prazos de até 20 anos e taxas civilizadas, representa transferir poder de decisão financeira para quem mais precisa. A jornada para popularizar esse produto exige tecnologia, regulação e, principalmente, comunicação massiva. A próxima década dirá se o Brasil finalmente equilibra sua matriz de crédito ou permanece refém da armadilha do curto prazo.
*CEO da FlowCredi