Na esteira do esforço para reduzir a fricção sobre serviços financeiros, uma tendência começa a ganhar cada vez mais força entre empreendedores, fintechs e grandes bancos – e a atrair as atenções de autoridades reguladoras em todo o mundo: as chamadas stablecoins.
Na visão de especialistas do setor consultados por Finsiders Brasil, essas criptomoedas atreladas a moedas fiduciárias geralmente na proporção de 1:1, como o dólar ou o real, ou à commodities como o ouro ou o petróleo, têm um grande potencial para revolucionar pagamentos, investimentos, comércio exterior e varejo, aumentando ainda o grau de globalização na indústria financeira.
Em relatório divulgado em abril, o banco americano Citi projetou que o mercado de stablecoins deve alcançar uma capitalização entre US$ 1,6 trilhão e US$ 3,7 trilhões até 2030. Com a criação de novos negócios e o ganho de popularidade entre investidores comuns, isso significa que o segmento pode sair dos atuais US$ 230 bilhões e crescer cerca de 16 vezes até o final da década.
Ataque hacker
Para que isso se torne realidade, porém, ainda há um longo caminho a ser percorrido. Existe um temor de desmantelamento do setor financeiro tradicional por parte de especialistas e autoridades reguladoras. E, também, casos crescentes de uso das stablecoins por cibercriminosos. Na segunda-feira (1/7), por exemplo, seis instituições financeiras tiveram suas contas-reserva do Banco Central (BC) invadidas em um ataque à C&M Software, empresa que integra fintechs ao BC para transações de Pix, TED e outros arranjos do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB).
O BC confirmou o incidente. Ao CoinTelegraph Brasil, o CEO da SmartPay e criador da carteira de auto-custódia Truther, Rocelo Lopes, disse ter detectado um problema às 00:18 do dia 30 de junho, com o movimento atípico em plataformas. Assim, o executivo aumentou os filtros de validação nas compras de USDT e bitcoin, o que resultou na retenção e devolução de um grande volume de recursos às instituições financeiras envolvidas. Ainda, após roubarem o montante, os hackers teriam movimentado valores de diferentes provedores de criptoativos, com o foco na aquisição de criptomoedas. As estimativas é que os criminosos tenham roubado entre R$ 800 milhões e R$ 1 bilhão.
Segundo a advogada Edna Dias, especialista em Direito Tributário e Criptoativos, a sensação de segurança proporcionada pelo termo stablecoin pode ser ilusória. “Nem toda stablecoin é realmente segura. Há tokens com lastro auditado em dólar, sim, mas também há os que são pareados com ativos ilíquidos, sem auditoria ou qualquer supervisão efetiva. E o investidor, muitas vezes, não tem ideia disso”, alerta.
Fuga de capital
A advogada destaca que stablecoin virou um rótulo genérico que abrange moedas muito distintas entre si — incluindo tokens lastreados em algoritmos, commodities e até criptoativos voláteis. “É como se todas fossem iguais, mas não são. E essa falsa sensação de homogeneidade é perigosa. Quando a estabilidade está apenas no nome e não na estrutura, o investidor corre um risco invisível”, diz.
Ela ainda aponta outra questão: o avanço das stablecoins no Brasil ocorre, em grande parte, fora das exchanges tradicionais. “Hoje, é muito comum o uso de carteiras descentralizadas, contratos inteligentes e apps peer-to-peer. Isso cria uma zona cinzenta para a Receita Federal, que não consegue rastrear boa parte das operações.”
O Banco de Compensações Financeiras Internacionais (BIS), considerado o “banco central dos bancos centrais”, também alerta sobre os riscos proporcionados pelos avanços das stablecoins na economia tradicional.
Entre os pontos destacados no relatório, o BIS afirma que as moedas digitais podem resultar na fuga de capital de economias emergentes e minar a soberania de países. O órgão também questiona a transparência desses ativos e entende que as stablecoins não têm uma função de liquidação de um banco central tradicional com moeda fiduciária.
Esforço
Na avaliação do presidente da Associação Brasileira de Criptoeconomia (ABCripto), Bernardo Srur, os riscos apontados pelo BIS olham para o sistema financeiro internacional de forma ampla e o controle sobre o trânsito do dinheiro entre países. “Há várias questões que o relatório invoca que não estão ligadas à economia, mas a questões territoriais, de soberania de países”, afirma Srur. “As stablecoins têm a capacidade de integrar usuários de diferentes países em um clique, de forma muito rápida. Não vejo isso como risco, mas como uma característica de processo um processo evolutivo.”
Ele reconhece, contudo, que há desafios a serem superados. “Lógico que [as moedas digitais] vão trazer desafios monetários locais, sobre o tráfego, o controle e a taxa de referência, dado que todo o mecanismo monetário de um país foi montado dentro de uma característica específica, da qual não se previa tanta velocidade ou tanta integração como a gente tem hoje.”
O presidente da ABCripto afirma que as stablecoins representam um grande esforço da indústria financeira. Tanto para viabilizar produtos, criar reservas de valor, quanto trazer novas soluções em meios de pagamentos e investimentos. “Eu vejo que as fintechs têm um papel fundamental nesse processo transformacional”, diz ele. “Na minha visão, é uma questão de tempo para que não somente as fintechs, mas também todo o mercado, esteja operando nesse formato. O trabalho com stablecoins ajuda a tangibilziar diversos ativos”.
Na avaliação do diretor de novos negócios do Mercado Bitcoin, Fabrício Tota, enquanto investidores de varejo ainda têm certo receio de investir em bitcoins, por exemplo, as stablecoins têm maior receptividade.
“De certa forma, acho que é mais palatável. Todo mundo entende o conceito um pouco mais fácil. O uso e o benefício também, e até mesmo os desafios. É um tema que conectou muito, se não no dia a dia das pessoas, dá para entender e tem uma parcela da população, e, quando a gente vai para as empresas, elas se conectam com o assunto”, diz Tota. Ele entende que as moedas digitais despontam como uma alternativa rápida e acessível para alocações e proteção de capital.
Potencial trilionário
Com ou sem riscos ou desafios regulatórios, o fato é que diversas empresas já investem em iniciativas para atrair consumidores. Em junho, a Matera, companhia de tecnologia para produtos financeiros, anunciou uma parceria com a norte-americana Circle, uma das maiores emissoras de stablecoins do mundo. Na iniciativa, a Matera poderá utilizar na sua plataforma, a Digital Twin, a criptomoeda USDC, lastreada em dólar. Assim, será possível oferecer transferências entre reais e USDC diretamente na interface de bancos e fintechs para pagamentos internacionais, investimentos no exterior e cobertura de cartão.
De acordo com Carlos Netto, CEO da Matera, a integração com a Circle permite experiências multicontas e multimoedas, com saldos em real, dólar e USDC. “A interoperabilidade entre stablecoins e contas em moeda local deixou de ser um experimento, agora faz parte do coração do sistema financeiro. É uma virada de chave para bancos e fintechs que desejam atuar globalmente”, diz ele.
O executivo da Matera menciona a proposta da Binance entre as iniciativas de destaque no segmento. Em maio, a Binance integrou o Pix à sua plataforma de pagamentos, a Binance Pay, para a utilização nos casos de transferências e pagamentos instantâneos. “Não é necessário ter um saldo em USDC. A pessoa paga em real mesmo. Então, o Pix fica como última milha. A gente pode fazer algum tipo de conversão automática no momento do pagamento”, diz Netto. “Será bonito quando o mundo todo estiver usando o mesmo QR Code.”
Eficiência e flexibillidade
Outra a anunciar parcerias com a Circle foi a Fiserv. A companhia de tecnologia bancária divulgou, no final de junho, os planos de ter uma nova plataforma de ativos digitais. A ideia é integrá-la à FIUSD, sua stablecoin lastreada em dólar, até o final de 2025. A criptomoeda será disponibilizada via blockchain Solana e terá tanto a Circle quanto a Paxos como fornecedoras de infraestrutura.
“Acreditamos que a FIUSD, juntamente com nossas outras plataformas bancárias e comerciais nativas em nuvem, oferecerá aos nossos clientes a eficiência e a flexibilidade de que precisam para prosperar nesse ecossistema financeiro em evolução”. A afirmação é do diretor de operações (COO, na sigla em inglês) da Fiserv, Takis Georgakopoulos. Ele enfatiza o objetivo de democratizar o acesso a serviços financeiros baseados em blockchain. Agora, a empresa está em conversas com outros parceiros, mirando na utilização de stablecoins e depósitos não tokenizados para além dos Estados Unidos.
O gerente geral da Fiserv no Brasil, Jorge Valdivia, ressalta ao Finsiders Brasil o tamanho da oportunidade para as empresas financeiras de tecnologia. “As fintechs têm uma oportunidade única de liderar a adoção de stablecoins no Brasil e na América Latina, com mais rapidez e inteligência e menos fricção, oferecendo soluções de pagamento, câmbio e remessas internacionais baseadas em stablecoins. E em tempo real”, afirma. A Fiserv processa mais de 90 bilhões de transações por ano em mais de 10 mil instituições financeiras e 6 milhões de estabelecimentos comerciais.
Disputa
A disputa por território em pagamentos de serviços digitais também atraiu as atenções das bandeiras de cartões. Recentemente, a Mastercard divulgou, em parceria com a Fiserv, seus planos de permitir o recebimento de pagamentos em FIUSD para mais de 150 milhões de comerciantes no mercado global.
“Aproveitando o poder da rede Mastercard, bem como nossas amplas capacidades no setor de ativos digitais, estamos criando um ecossistema robusto que conecta os serviços financeiros tradicionais aos ativos digitais”, disse o copresidente para as Américas na Mastercard, Chiro Aikat, em comunicado à imprensa.
Na outra ponta, a Visa também tem dado passos ambiciosos em direção às moedas digitais. No mês passado, a companhia se junto à exchange africana de criptomoedas Yellow Card para expandir suas capacidades com stablecoins em mercados como Oriente Médio, África e Europa. Com a habilitação de pagamentos em USDC, da Circle, a Visa informou já ter transacionado mais de US$ 225 milhões liquidações de transações entre clientes.
*Repórter freelancer do portal