A ressaca com a escassez de recursos no mercado tornou o ano das fintechs para lá de desafiador. Com a redução da grana na mesa, os fundos se tornaram mais seletivos, e as rodadas envolveram empresas com algum grau de maturidade. De forma tímida, as captações voltaram aos poucos, o que resultou no foco pelo ‘breakeven’ entre as startups do setor. Ou seja, dar resultado virou praticamente um mantra.
Em paralelo, o mercado presenciou evoluções do Pix e do Open Finance, além da chegada do Drex, a versão digital do real, atualmente em fase piloto. Aos 45 do segundo tempo, o Banco Central (BC) também publicou a primeira consulta pública para a regulamentação do mercado de criptoativos. Já no âmbito da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a consulta sobre portabilidade foi o primeiro passo rumo ao Open Capital Market.
Para 2024, a agenda de inovação financeira será intensa. Além das mudanças regulatórias, ganham cada vez mais espaço tecnologias como inteligência artificial (IA) e blockchain, o que levará a novas soluções e novos modelos de negócios. Assim, devem evoluir temas como tokenização dos ativos (financeiros ou não), ‘embedded finance’, serviços com foco em nichos e hiper personalização.
Oportunidades
A tendência é que o consumidor passe a ter maior poder de escolha com as novas soluções, diz Fernanda Garibaldi, diretora-executiva da Zetta, associação de fintechs integrada por nomes como Nubank, Mercado Pago, Creditas e PicPay. Ela diz que a portabilidade de maneira ampla — de salário, crédito, seguros, recursos de previdência e até mesmo de benefícios — será um tema central.
“Estamos vivendo um momento de maior maturidade de algumas dessas empresas que já testaram o seu modelo de negócio nos últimos 5 anos. Tem uma série de oportunidades para novos entrantes e acho que os fundos estão exatamente observando as teses — agora de maneira um pouco menos eufórica do que anos atrás —, olhando exatamente para onde há espaço de crescimento”, afirma.
Após anos de crescimento impulsionado pela grande fatia de consumidores desassistidos, as fintechs entram em um novo momento em 2024 — de mais maturidade. Uma pesquisa global da consultoria McKinsey junto a mais de 100 executivos indica que as receitas das fintechs podem crescer 15% ao ano até 2028, alcançando mais de US$ 400 bilhões. Parece pouco, mas esse volume é três vezes maior do que a média da indústria bancária.
‘Embedded finance’
Hoje, a análise da McKinsey observa que bancos e não bancos estão competindo para suprir as necessidades dos usuários em cinco diferentes áreas: o uso diário de banking, aconselhamento para investimentos, complexidade financeira, intermediação no atacado em massa e banking as a service (BaaS).
Se na última década o país presenciou uma massificação dos bancos digitais, agora a aposta é que eles estarão muito mais segmentados, atendendo nichos específicos de clientes. A previsão é de aumento da oferta de serviços financeiros por empresas de fora do segmento, caso do varejo, por exemplo.
De acordo com relatório da Mambu, plataforma alemã de core banking na nuvem, o ‘embedded finance’ não será mais uma exceção para atender os consumidores, mas o usual. O movimento pode ajudar na redução da fricção na hora de fechar a compra, enquanto as empresas podem criar novas linhas de receita e reduzir custos, melhorando a eficiência.
Nos últimos anos, a Jazz Tech, plataforma tecnológica de BaaS, conseguiu avançar ao permitir que diversas empresas de fora do ecossistema das finanças oferecessem serviços bancários. No seu modelo white-label (com a marca das empresas), os clientes vão do segmento travel a empresas de benefícios, passando por varejistas, sub-adquirentes e outras fintechs.
José Roberto Kracochansky, CEO da Jazz, diz que salvo algumas exceções, os bancos digitais pouco se diferenciaram com a explosão de players nos últimos anos. A parceria com outras empresas, portanto, é um caminho natural para reduzir os custos e aumentar a distribuição de produtos em mais canais.
“Serviços financeiros são commodities. Ninguém tem exclusividade. O Pix, os pagamentos e os cartões são produtos regulados e padronizados. No final do dia, leva vantagem que consegue agregar algo ao consumidor. Se o varejista, que é usado na compra do supermercado, consegue levar algo para ele, há um ganho”, diz.
Open Finance
O Open Finance é visto como fundamental na estratégia de levar serviços de banking para outras verticais. À medida que as companhias — não só financeiras — têm mais informações sobre os usuários, elas conseguem oferecer melhores produtos e no tempo correto. Em outras palavras, há uma otimização de custos no processo e um cliente mais satisfeito.
“O modelo potencializa a oferta do produto. Caso um supermercado queira levar um serviço financeiro para o consumidor, ele pode disponibilizar produtos básicos e produtos mais sofisticados”, afirma José Roberto. O executivo diz que enquanto o varejo pode prover serviços mais básicos como pagamentos e movimentações de saldo, serviços como financiamentos ou investimentos poderiam ficar a cargo de terceiros.
Com 800 instituições participantes, o Open Finance no Brasil conta, hoje, com mais de 41 milhões de consentimentos ativos e 1,2 bilhão de dados transferidos por semana. Na última semana, o BC decidiu endurecer as regras sobre a performance das empresas envolvidas. A Estrutura de Governança vai avaliar aspectos como a qualidade dos dados, o desempenho de disponibilidade das APIs, a fluidez na jornada de compartilhamento dos dados e a iniciação de transação de pagamentos.
Para o head de inovação em pagamentos do Mercado Pago, Felipe Soria, o volume de consentimentos no país ainda é baixo, dada a janela de crescimento. “A própria Inglaterra, que começou antes, já foi superada. Mas, no Brasil, em que temos cerca de 600 milhões de contas, o número ainda é pequeno em meio ao enorme potencial”, diz.
Hiper personalização
Um dos erros do setor, argumenta Felipe, foi a crença de que o entendimento sobre a proposta aumentaria a inclusão de usuários. Hoje, ele diz que a entrega de experiências práticas com o compartilhamento de dados traz um retorno muito melhor. “Algumas coisas são genéricas, como o agregador de saldo de contas. Mas o potencial do Open Finance é particular. O segredo está mais na hiper personalização.”
Um dos entraves no meio do caminho é a renovação dos consentimentos. Tanto é que a própria autoridade monetária identificou o problema, abrindo a possibilidade das instituições estenderem o prazo por mais tempo. Na prática, o limite de 12 meses deixou de existir, e o período máximo dependerá da negociação entre os players e seus clientes.
Felipe cita, ainda, duas experiências que, no ano que vem, também devem contribuir para o impulso ao Open Finance. Uma delas são as transferências inteligentes (antes chamadas de ‘sweeping accounts’): o usuário permite o consentimento ao iniciador de pagamentos, e, sendo da mesma titularidade, a ação é executada de forma automática, sem a necessidade de um redirecionamento.
A outra tem a ver com a própria evolução do Pix, cujo próximo produto é o Pix Automático, com foco em cobranças recorrentes. A modalidade está prevista para lançamento em outubro de 2024.
Tokenização
Entre as grandes expectativas para 2024 certamente está o aumento do grau de tokenização da economia. Isso poderia trazer mais segurança, por meio dos ‘smart contracts’, reduzir os custos e prover mais agilidade nas transações. De acordo com Paulo David, CEO da fintech de infraestrutura de crédito AmFi, a tokenização em massa é só uma questão de tempo.
O empreendedor lembra que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) autorizou, em dezembro, a oferta de tokens que usam como garantias recebíveis de cartões e duplicatas a investidores de varejo e empresas. “Nós temos 600 investidores cadastrados com um produto próprio. São 600 de um universo de 200 milhões de pessoas no Brasil. Então, é muito pequeno ainda. Há um mercado gigantesco”, diz.
Mais do que aumentar a oferta de crédito para setores como as pequenas e médias empresas (PMEs), que demandam bastante crédito para suas atividades, a tokenização pode ajudar com que mais companhias acessem o mercado de capitais — algo importante, inclusive, em tempos de ‘inverno’ no venture capital.
‘IPO Humano’
Um dos exemplos vem do fundo Futurum Capital, que tem entre os cofundadores o empresário Guga Stocco. No início deste mês, ele apresentou ao mercado a sua iniciativa de ‘IPO Humano’.
De acordo com a proposta para democratizar o mercado de VCs, os investidores podem aplicar a partir de R$ 1,5 mil. Em troca, recebem cerca de 150 tokens e acompanham o empreendedor em seus investimentos em startups – um valor bem inferior aos cerca de R$ 500 mil em instituições profissionais, afirma ele. A empreitada saiu do papel em parceria com a Genezys, plataforma de investimentos e tokenização de ativos, e a Legacy Inc., que trabalha com a criação e gestão de negócios em entretenimento.
Um dos ganhos na ponta é a taxa de administração zero, o que só é possível com a automatização via blockchain. “No momento em que você tokeniza, o investimento é fracionado. Esse tipo de ação é interessante porque, em um futuro muito breve, boa parte dos investimentos serão tokenizados. Por conta da maior democratização e a possível entrada de novos clientes, há mais liquidez para o mercado. Isso faz o investimento ficar muito mais atraente”, diz Guga.
Outro impulsionador deste movimento é o surgimento do real digital, argumenta. No âmbito de seu programa piloto, o BC já tem feito testes envolvendo a compra de imóveis envolvendo a nova CBDC.
Duplicatas eletrônicas
As duplicatas eletrônicas também devem ganhar força no próximo ano, com potencial de destravar a oferta de crédito para PMEs. Atualmente, o mercado de duplicatas gira em torno de R$ 11,3 trilhões por ano, mas ele só opera com uma fatia entre 5% a 10%, aponta Fernando Fontes, cofundador e CEO da registradora CERC. Quando esse potencial for destravado, esse volume total pode quadruplicar, diz ele.
Em agosto, o BC aprovou a Resolução 339, visando padronizar o registro de duplicatas eletrônicas. As novas regras resolvem duas dores importantes do setor: a duplicidade nas emissões pelas empresas e o lastro. Assim, abre-se uma nova janela de oportunidades para as fintechs de crédito.
O CEO da registradora destaca duas percepções sobre este tipo de fintech nascida nos últimos anos. Primeiro, elas concentraram a sua atuação nas pessoas físicas. Segundo, nas pessoas jurídicas a oferta foi de um crédito ‘clean’, ou seja, sem garantias.
“O que eu vejo, olhando para o ano que vem, é um cenário completamente novo para as fintechs que queiram explorar o território de pessoas jurídicas, agora com a perspectiva de operar com garantias”, afirma.
Com mais segurança, isso tira a necessidade de grande foco em cobranças para as startups de crédito, reduzindo este tipo de despesa com os times, além de amenizar o problema da inadimplência. “Para ser relevante em crédito com duplicata, primeiro ela teria que ser relevante em ‘cash management’ para penetrar nesse ambiente.”
Pagamentos cross-border
Esse novo arranjo no setor bancário também passa pelos pagamentos cross-border. De acordo com estimativas do Banco da Inglaterra, esse mercado deve movimentar US$ 250 trilhões até 2027. Não por acaso, é natural que cada vez mais fintechs surgissem na disputa.
Hoje, uma ferramenta que pode despontar para proporcionar agilidade ao setor é o Pix. Apesar dos pagamentos instantâneos terem surgido com o UPI (Unified Payments Interface, ou Interface de Pagamentos Unificados), em 2016, na Índia, o sucesso do modelo tupiniquim ganhou força e tem exercido bastante influência na América Latina, mas não só. Os Estados Unidos lançaram o FedNow, a sua versão do Pix, em julho.
“A ideia é que a gente consiga ter essas novas funcionalidades do Pix nesse mercado também. É um mercado que ainda tem bastante custo, falta de transparência e muita ineficiência. Há muito para melhorar nessas operações de câmbio, de pagamentos transfronteiriços”, afirma Fernanda, da Zetta.
Pix na gringa
Depois de uma onda de contas globais — Avenue, Nomad, C6, Inter e outros —, o próximo passo é que os pagamentos instantâneos sejam usados em operações mais comuns. No caso do Pix, Guga Stocco lembra que o sistema brasileiro já é aceito nos comércios de países como Paraguai e Argentina.
“Quando você pega o cartão e vai no adquirente, ele pergunta se a operação é em real ou em dólar. É um sistema de câmbio. A diferença é que o Pix é imediato. Eu conectando o Pix ali, ao invés de ser esse adquirente que faz a conversão na ponta, se ele botar o QR Code no Pix, ele faz o câmbio”, diz Guga.