Por Ricardo Figliolini*, para o Finsiders
O VAR, inovação que buscava assegurar que as regras do jogo seriam cumpridas, foi usado pela primeira vez em 2018, durante a Copa do Mundo, na Rússia. Como toda novidade que gera impacto, recebeu muitos elogios e críticas. E isso tem a ver com as recentes mudanças no registro de recebíveis de cartões, mas já falamos sobre isso…
Passados quatro anos, evoluímos na utilização do VAR, mas não sem algumas longas discussões existenciais em mesas de bar. Depois de ser utilizado em diversos campeonatos, hoje vivemos uma copa do mundo com menos debates sobre a potencial morte do futebol, e sim com discussões objetivas sobre melhorias. Ficou claro que ninguém quer estar do outro lado de um gol feito com a “mão de Deus”, como Maradona em 1986.
Também é a vez de evoluirmos nosso debate sobre serviços financeiros e a melhoria da vida dos empreendedores brasileiros. No último dia 25 de novembro, o Banco Central (BC) publicou um conjunto de resoluções (com destaque para a Resolução BCB 264) que atualiza a regulamentação do sistema de registro de recebíveis de arranjo de pagamento, que por simplicidade vou chamar de sistema de registro (nota do editor: a mudança na regulamentação foi reportada pelo Finsiders, em outubro).
Similar à evolução do VAR, o sistema já vem rodando há aproximadamente um ano e meio, o que deu tempo para o BC aprender como o mercado realmente opera o sistema, e agora atualizar suas regras em um ambiente de discussões mais objetivas. Essa atualização apazigua a ‘turma do deixa disso’ e nos aproxima ainda mais do espírito original da regulação: dar liquidez aos mais de R$ 3 trilhões em recebíveis que estão nas mãos de varejistas de todo o Brasil.
Os efeitos da publicação passarão a vigorar em dois momentos do ano que vem, em junho e novembro. Daqui até lá ainda existem etapas importantes, como a publicação da nova convenção das registradoras em fevereiro, que passará a integrar a própria regulação, detalhando os níveis mais técnicos e operacionais do sistema.
A nova regulação é positiva para os varejistas que buscam alternativas na hora de usar seus recebíveis para melhor gerir seus fluxos de caixa, mas ainda deixa temas a serem esclarecidos na convenção. Seguem abaixo alguns pontos de destaque.
Mais clareza, mais negócios
Desde junho de 2021, varejistas de qualquer tamanho já podem negociar seus recebíveis de cartão com terceiros fora do ecossistema das adquirentes. A novidade é que o BC trouxe mais clareza para a regra do que compõe o valor desses recebíveis.
Em sua primeira versão o BC definiu de forma clara como agrupar os valores das transações em pacotes chamados unidade de recebível (UR), mas não deu uma definição para potenciais deduções dos valores dessas URs, numa clara intenção de deixar o mercado se autorregular primeiro.
O que aconteceu foi que algumas adquirentes e subadquirentes buscaram em suas próprias interpretações formas de tornar os recebíveis menos atraentes para o mercado, dificultando a vida de varejistas que queriam negociar seus recebíveis. Foram criadas distorções e incertezas que buscavam manter a reserva de mercado das adquirentes, e em parte atrasaram o progresso do sistema.
Com a nova regra, o BC manteve a definição básica de UR, e incluiu trechos que definem o que pode ser deduzido delas. O voto que pede a atualização da regulação fala acertadamente em minimizar incertezas, e não em prejudicar os varejistas.
Adquirentes agora podem fazer bloqueios de valores para defender não só o recebimento dos valores de serviços e obrigações contratadas pelos varejistas, mas também os riscos associados ao fluxo de pagamentos, como estornos e ‘charge backs’. Esses bloqueios são constituídos pelas adquirentes com recebíveis e/ou dinheiro dos próprios varejistas, para assegurar o fluxo de pagamento.
Quando os varejistas decidem negociar seus recebíveis com terceiros, por meio do sistema de registro, não podem se beneficiar dessa reserva já constituída com seus próprios recursos. Cada nova negociação que o varejista faz com um novo financiador acarreta uma nova análise do mesmo fluxo já segurado pela adquirente, mas que o novo financiador não pode ter acesso. Essa ineficiência limita significativamente a capacidade desse varejista se financiar, no limite ele pode ter dois “bloqueios” para assegurar o mesmo fluxo.
Verdade única
Outro ponto de destaque é o aprofundamento do entendimento de que o sistema de registro é a verdade única sobre o status dos recebíveis dos varejistas. O novo texto traz a responsabilidade de a adquirente mostrar não só o valor de recebíveis que estão registrados no sistema, mas também as negociações, bloqueios e todos os efeitos refletidos no sistema de registro. Evoluções como esta dão mais isonomia ao sistema, fortalecendo a competição de mercado e inibindo comportamentos de incumbentes que buscam se defender usando de desinformação.
Nesta casa de ferreiro, o espeto não é mais de pau
Com o espírito de trazer competição a um mercado historicamente cativo, o BC também se atentou à competição entre as próprias registradoras. Novas entrantes como a B3 podem se beneficiar da nova regra de portabilidade, que define prazos para sua execução e dá liberdade aos usuários para escolherem a melhor registradora para seus negócios, mesmo depois de já estarem operando com outra registradora.
Responsabilidade e isonomia
A maior inclusão de texto diz respeito ao papel das registradoras, que passam a ter mais responsabilidade perante o bom funcionamento do sistema de registro e em salvaguardar sua isonomia. Práticas que buscavam criar artificialmente vantagens competitivas para uma ou outra registradora estão com seus dias contados. O sistema de registro e seus participantes só têm a ganhar com isso.
Uma curiosidade interessante é ver como o BC incorporou na nova regulação elementos da antiga convenção das registradoras, algo que reforça a posição de um BC que interage positivamente com o mercado.
Considerações gerais
A nova regulação evoluiu buscando objetividade. É notório que discussões como as do início de 2021 que botavam em xeque elementos básicos ou até a própria existência do sistema não fazem mais nenhum sentido.
A chave para melhorar a vida de milhões de varejistas me parece estar na isonomia que o BC busca, mas precisamos dobrar a aposta nesse tema.
O sistema é complexo, e pequenas vantagens artificiais aqui e ali podem ter impactos na velocidade de adoção, na manutenção dos mercados cativos dos incumbentes e no impacto social positivo que essa regulação tem tanto potencial de atingir.
*Ricardo Figliolini é sócio e responsável pelas áreas de negócios e estratégia da Marvin, fntech que oferece um método de pagamentos B2B utilizando os recebíveis de cartão.
As opiniões neste espaço refletem a visão dos especialistas e executivos de mercado. O Finsiders não se responsabiliza pelas informações apresentadas pelo autor do texto.
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