Imagem: Canva
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O mapa da infraestrutura financeira global está sendo redesenhado, e o compasso aponta para as stablecoins. Elas já movimentam cerca de US$ 27 trilhões por ano, de acordo com a Visa, e agora entraram definitivamente na pauta dos reguladores. O Banco Central do Brasil, pioneiro entre as economias emergentes, abriu três consultas públicas (CP 109, 111 e 126) que formam um mosaico inédito: quem pode emitir, como pode operar e até onde pode ir. Enquanto isso, empresas como Mastercard, Visa, Stripe e Coinbase disputam aquisições bilionárias de infraestruturas como BVNK e ZeroHash, de olho na nova trilha global de liquidação. O dinheiro está se tornando programável — e, como toda infraestrutura em transição, o poder também muda de lugar.

De moeda digital a trilho financeiro

Nos últimos dois anos, as stablecoins deixaram de ser um ativo alternativo para se tornarem o novo trilho operacional do sistema financeiro digital. Não substituem as moedas nacionais, mas oferecem algo que nenhuma rede bancária tradicional entrega: liquidez global, liquidação instantânea e programabilidade nativa.

Bancos, fintechs e processadoras já enxergam vantagens concretas: redução de custos cambiais, liquidação 24/7, tesouraria automatizada e integração direta com sistemas corporativos. Casos práticos se multiplicam. A Visa, por exemplo, permite que empresas depositem USDC em pré-funding para liquidações quase instantâneas via Visa Direct. A MoneyGram opera remessas com stablecoins na Colômbia. Já a Stripe converte pagamentos internacionais diretamente em dólar digital.

Edson Santos e Maurício Baum/Colink | Imagem: divulgação
Edson Santos e Maurício Baum/Colink | Imagem: divulgação

Nos bastidores, trata-se de um novo trilho paralelo ao Swift — mais rápido, mais previsível e com menos intermediários. Enquanto o sistema tradicional depende de janelas bancárias e compensações cruzadas, uma transação em stablecoin liquida em segundos, sem fronteiras nem horários.

O futuro dos pagamentos não está na tecnologia em si, mas no que ela desbloqueia: novos modelos de negócio, margens menores e liquidez permanente.

Formar de enviar dinheiro para outro país

Fluxo 1 — Remessa internacional tradicional (via Swift)

  1. O processo é compensado internamente pela instituição entre os países, dispensando bancos correspondentes ou múltiplas camadas de liquidação;
  2. O remetente instrui seu banco a enviar recursos para o exterior;
  3. O banco de origem envia a ordem pela rede Swift;
  4. Bancos correspondentes intermedeiam a transação, mantendo contas Nostro/Vostro e aplicando spreads cambiais;
  5. O banco de destino recebe a ordem e credita o valor ao beneficiário;
  6. A liquidação ocorre após compensações sucessivas entre correspondentes e sistemas locais.

Tempo médio: 1 a 5 dias úteis
Custo médio: entre 5% e 8% (tarifas e spreads)
Intermediários: de 3 a 6 instituições
Disponibilidade: restrita a horários bancários
Transparência: parcial — o remetente e recebedor raramente veem o caminho completo dos fundos

Fluxo 2 – “Remessa” por encontro de contas

  1. O remetente instrui a instituição a fazer a remessa, informando valor, país de destino e conta do destinatário;
  2. O pagamento é feito localmente, por meio de transferência doméstica, débito ou cartão, evitando que o dinheiro atravesse fronteiras;
  3. A instituição utiliza seu próprio saldo ou conta bancária no país de destino para efetuar o pagamento ao beneficiário como uma remessa local — ou seja, o valor é compensado dentro de cada país;
  4. O destinatário recebe na conta indicada, normalmente com câmbio transparente (taxa de mercado) e tarifa previamente informada.

Tempo médio: de segundos a poucas horas, dependendo do valor da transação.
Custo médio: entre 0,3% e 1,2%, conforme o corredor e o método de pagamento.
Intermediários: apenas a instituição de envio e o banco local de destino.
Disponibilidade: 24 horas por dia, sete dias por semana.
Transparência: alta — taxas e câmbio informados antecipadamente, sem margens ocultas.

Esse modelo funciona de forma eficiente quando há fluxos equivalentes de remessas nos dois sentidos de um mesmo corredor. Em rotas desequilibradas, a instituição precisa realizar liquidações complementares internacionais, por meio de câmbio tradicional ou trilhos digitais como as stablecoins.

Fluxo 3 — Remessa via stablecoin (on-chain)

  1. O remetente envia reais via Pix ou transferência para uma instituição autorizada, que converte BRL em stablecoin (como USDC ou USDT);
  2. O valor é transferido on-chain, ponto a ponto, sem bancos correspondentes;
  3. O recebedor pode manter o saldo em dólar digital ou converter a stablecoin em moeda local, em segundos;
  4. A transação é validada na blockchain, com registro público e imutável.

Tempo médio: segundos ou minutos
Custo médio: abaixo de 1%
Intermediários: um ou dois (empresa on/off-ramp)
Disponibilidade: 24 horas por dia, sete dias por semana
Transparência: total (on-chain)
Programabilidade: pagamentos automáticos, reconciliação e condições pré-definidas

No corredor Estados Unidos–México, por exemplo, 30% das remessas em 2024 já usaram stablecoins. E o custo médio caiu de 6% para menos de 1%, de acordo com relatório da Atlantico.

Quanto menos fricção, mais o dinheiro se comporta como software.

A regulação ganha o protagonismo

Enquanto o mercado amplia os casos de uso das stablecoins, no Brasil, o Banco Central (BC) estrutura um marco regulatório que poderá servir de referência internacional.
As três consultas públicas abertas entre 2024 e 2025 formam um roteiro claro de consolidação institucional.

A CP 109, aberta em novembro de 2024, define regras de constituição e funcionamento para as Prestadoras de Serviços de Ativos Virtuais (PSAVs ou VASPs, na sigla em inglês), com requisitos de governança, capital mínimo, auditoria e segregação patrimonial. O prazo de contribuições se encerrou em fevereiro de 2025, e o texto final aguarda aprovação.

Na sequência, a CP 111, publicada em dezembro de 2024, propõe a integração entre ativos virtuais e o mercado de câmbio, permitindo que stablecoins sejam usadas em remessas e pagamentos internacionais sob supervisão do BC. Também encerrada em fevereiro de 2025, essa consulta pavimenta o caminho para liquidações cross-border (transfronteiriças) reguladas e interoperáveis com o sistema financeiro tradicional.

Regras prudenciais em debate

Mais recentemente, em 29/10, o BC lançou a CP 126, voltada a regras prudenciais de capital para instituições financeiras expostas a ativos digitais. O texto classifica os criptoativos em quatro subgrupos, conforme o risco e o lastro:
1A — ativos tokenizados lastreados em ativos reais;
1B — stablecoins lastreadas em moedas fiduciárias;
2A — ativos com instrumentos de proteção;
2B — criptoativos sem lastro.

As stablecoins (1B) recebem tratamento equivalente ao ativo de referência, um reconhecimento formal de seu baixo risco relativo e de sua função de liquidação.
O prazo para contribuições vai até 30/01/2026. A norma deve entrar em vigor em janeiro de 2027.

Essas três consultas são complementares:
a CP 109 define quem pode operar,
a CP 111 define como operar,
e a CP 126 define até onde operar.

Juntas, mostram que o Brasil pretende equilibrar inovação e estabilidade num momento em que a maior parte do mundo ainda discute como começar.

O desafio do regulador é garantir que a confiança viaje na mesma velocidade do código

O que vem pela frente

Os dados da Atlantico e as iniciativas do BC indicam que o mercado já opera enquanto a regulação corre atrás. As stablecoins deixaram de ser um experimento para se tornar infraestrutura primária de liquidação. À medida que reguladores, bancos e fintechs alinharem suas camadas de compliance e interoperabilidade, veremos surgir a primeira rede global de valor programável, estável e inclusiva.

O dinheiro está mudando de forma — e também de ritmo. O que começou como um ativo digital está se tornando a base de uma nova infraestrutura de confiança. E, nessa nova geografia do sistema financeiro, quem dominar os trilhos vai ditar a velocidade do mundo. O dinheiro se tornou bits e bytes, mas a confiança continua sendo a sua unidade de valor.

(Colaborou Mauricio Baum**)

*Conselheiro, consultor, advisor e investidor-anjo, e sócio-fundador na Colink
**Sócio da Colink; ex-VTEX e Dock