OPINIÃO

Como evolui o crowdfunding no Brasil e o que ainda pode melhorar

É recomendável a criação de uma nova norma específica para a oferta de dívidas diversas, analisa sócio do CBA Advogados

Financiamento coletivo
Financiamento coletivo | Imagem: gerada por IA/Adobe

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) sempre esteve atenta aos avanços tecnológicos e as alterações legislativas e regulatórias relativas ao mercado financeiro global. Foi nessa marcha que editou a Instrução CVM nº 588/2017 (ICVM 588), importando dos Estados Unidos, mais especificamente do Jumpstart Our Business Startups Act (Jobs Act), o conceito de equitycrowdfunding. Trata-se de um tipo de financiamento coletivo, muito utilizado na captação de recursos de startups.

A ICVM 588 foi pioneira ao possibilitar no Brasil a oferta pública de valores mobiliários emitidos por startups de maneira simplificada e sem a pesada carga regulatória normalmente aplicável a este tipo de operação. Isso contribuiu para o crescimento de ideias empreendedoras, ao passo que estabeleceu uma nova (e mais barata) maneira de financiamento de startups pelo mercado de capitais.

A ICVM 588 trouxe métricas expressivas ao mercado, dando segurança à CVM sobre a utilização do crowdfunding. Como consequência de seu sucesso, a CVM editou a Resolução CVM nº 88/2022 (CVM 88), expandindo o alcance da ICVM 588 e retirando algumas amarras que não mais se justificavam num mercado cada vez mais sólido.

Mudanças

Podemos dividir as alterações trazidas pela CVM 88 em alguns blocos principais. Houve, por exemplo, a expansão dos limites monetários para captação (de R$ 5 milhões para R$ 15 milhões) e do capital social das empresas elegíveis para realizarem a captação via crowdfunding (de R$ 10 milhões para R$ 40 milhões).

Outra mudança importante foi a maior flexibilidade na divulgação das ofertas, permitindo o uso de canais de mídia e analistas de valores mobiliários. Isso potencializou a captação de recursos, ao passo que atingiu mais investidores.

Um terceiro bloco de alterações envolve a atividade de escrituração e controle de titularidade dos valores mobiliários emitidos (artigo 12, da CVM 88). Inicialmente, a CVM trouxe a necessidade de contratação de uma escrituradora autorizada a funcionar, conforme diretrizes da Resolução CVM nº 33/2021. Todavia, atendendo às exigências do mercado, a CVM possibilitou que as próprias plataformas realizassem esta atividade. Isso desde que atendessem alguns requisitos técnicos (dispostos no artigo 12, da CVM 88).

Além de baratear e simplificar as operações de crowdfunding, a liberação foi utilizada como um verdadeiro sandbox regulatório para a CVM. Isso porque muitos players passaram a ofertar os valores mobiliários de emissão das startups, via tokens, com controle de titularidade feito pela tecnologia blockchain, que atendia os requisitos técnicos mínimos impostos.

O quarto bloco diz respeito a autorização das chamadas transações subsequentes. A CVM deixou claro, todavia, que não há um mercado secundário. Tal alteração veio para facilitar a saída do investidor, através de uma intermediação feita pela plataforma.

Expansão

As alterações trazidas pela CVM 88, especialmente no tocante ao controle de titularidade via blockchain, solidificaram o mercado de crowdfunding no Brasil. Assim, permitiram que ele se expandisse para além do financiamento de participação societária (equity), alcançando a captação de dívidas.

Essa expansão se deu muito por força do mercado imobiliário. O setor viu no crowdfunding uma alternativa viável e muito mais barata ao financiamento de seus projetos. Por meio desta tecnologia, o setor poderia captar recursos pela venda de tokens de recebíveis futuros lastreados no próprio imóvel objeto do financiamento.

A tokenização de dívidas e a emissão de valores mobiliários através da CVM 88 têm sido realizadas com sucesso por diversas empresas, demonstrando o potencial dessa abordagem. Isso porque a tecnologia blockchain, ao permitir a tokenização de ativos, facilita a rastreabilidade e a segurança das transações. Com isso, torna o processo mais eficiente e confiável.

Atenta aos novos movimentos do mercado, a CVM editou os Ofício Circular nº 4/2023 (OC 4/23). A cirgular trouxe algumas interpretações de sua área técnica (SSE) sobre a possibilidade de ofertas de tokens de recebíveis ou tokens renda fixa por meio de plataforma de crowdfunding.

Para além do venture capital

A CVM editou, também, o Ofício Circular nº 6/2023 (OC 6/23), equiparando o patrimônio separado às regras das sociedades empresárias de pequeno porte. Ou seja, o patrimônio separado passou a ser considerado para aferição dos limites de capital social da CVM 88. Isso permite, por exemplo, que construtoras e securitizadoras (ambas com capitais sociais milionários e sem possibilidade de enquadramento como sociedade de pequeno porte) possam emitir tokens para seus projetos, via patrimônio separado. A distribuição pode ser através de uma plataforma de crowdfunding.

Rodrigo Caldas de Carvalho Borges | CBA Advogados

Essa nova realidade trouxe consigo uma inevitável necessidade de alteração da CVM 88, para depurar o escopo da norma em dois grandes frontes: financiamento de startups (venture capital) e financiamento de projetos ligados a mercados mais sólidos.

Isso porque, quando trazemos a possibilidade de emissão de outros tipos de dívidas (não ligadas ao venture capital), por empresas mais consolidadas (via patrimônio separado, conforme OC 6/23), o risco da operação diminui. Assim, as limitações e amarras existentes na CVM 88 (pensadas para o venture capital) não só perdem sentido (por não terem razão de ser), como passam a atrapalhar o desenvolvimento do mercado, que perde liquidez e visibilidade.

As atuais restrições de captação de até R$ 15 milhões, por exemplo, são inadequadas para grandes empreendimentos imobiliários, que se mostram investimentos muito mais seguros.

Propostas

Diante deste cenário, é recomendável a criação de uma nova norma específica para a oferta de dívidas diversas, enquanto a CVM 88 poderia continuar a regular exclusivamente a oferta de participação societária em startups. Esta nova norma poderia introduzir medidas como a separação das regras conforme o tipo de emissor (pequenas empresas versus SPEs ligadas a empresas consolidadas) e a flexibilização dos limites de captação.

Além disso, seria benéfico aumentar o teto limite de investimento individual com base nas regras de suitability e permitir a negociação de um mesmo ativo em mais de uma plataforma para aumentar a liquidez do mercado. A introdução de um mercado secundário mais livre, mas ainda regulamentado, poderia facilitar a saída dos investidores e estimular o desenvolvimento do mercado de crowdfunding no Brasil.

Essas mudanças seriam fundamentais para alinhar a regulamentação brasileira às necessidades do mercado. Dessa forma, garantiriam um ambiente regulatório robusto que fomente o crescimento sustentável do crowdfunding, tanto para a captação de participação societária quanto para a emissão de dívidas.

Deveras, não pode se subestimar a importância do mercado de crédito no Brasil. O acesso a crédito é crucial para o desenvolvimento econômico, especialmente para pequenas e médias empresas (PMEs). Esse grupo representa uma parcela significativa do PIB e do emprego no país.

Ao adaptar a regulação para refletir melhor as realidades do mercado de crédito e as inovações tecnológicas, o Brasil pode continuar a liderar na criação de oportunidades para startups e investidores, assim como fortalecer sua posição no cenário global de inovação e empreendedorismo.

*Sócio do CBA – Carvalho Borges Araújo Advogados