UM CONTEÚDO ABIPAG

"Tem umas 150 instituições pedindo licença no BC", diz presidente da Anipe

João Camara, presidente da Associação Nacional de Instituições de Pagamento e Moeda Electrónica (Anipe) em Portugal, diz que isso na Europa "é ficção"

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João Camara/Anipe - Imagem: LinekdIn
João Camara/Anipe - Imagem: LinekdIn

Tem uma fila na “porta” do Banco Central de 150 instituições de pagamentos com pedidos de autorização para funcionar. “Isso é ficção científica, na Europa”! Nos 25 países da União Europeia, não tem tudo isso!”, exclama João Bettencourt da Camara. Ele é presidente da Associação Nacional de Instituições de Pagamento e Moeda Electrónica (ANIPE) em Portugal. No dia 20 de junho, João concedeu entrevista exclusiva a Finsiders Brasil, durante o 3º Congresso da Abipag, em Brasília.

Camara comparou os sistemas de pagamentos brasileiro e europeu, atribuindo uma indiscutível liderança ao primeiro. Graças, em primeiro lugar, ao fato de o Brasil ser um só único país, em contraposição à UE, com todas as suas instâncias nacionais e supranacionais e o “exagero legislativo” inerente. Segundo ele, foram esses os fatores que fizeram a Europa ser superada pelo Brasil em meios eletrônicos de pagamentos.

Finsiders Brasil: Para começar, poderia dizer como vê o setor, o mercado de meios eletrônicos do Brasil em comparação com a União Europeia e Portugal?

João da Camara: Acho muito importante que o mercado brasileiro e os seus intervenientes continuem a aprender as melhores práticas internacionais, mas o mercado brasileiro, nesta fase, não precisa de lições de ninguém. Estamos falando de um mercado que é o terceiro ou quarto maior a nível mundial e que, a nível de abertura e liberalização do setor de pagamentos, é um caso de sucesso para a ANIPE. Ter um tempo médio de seis meses para a aprovação de uma licença de funcionamento e 150 empresas esperando autorização na fila do Banco Central, isso não existe na Europa hoje em dia. Isso não existe em nenhum país europeu. Lá, se as coisas correm bem, o processo de licenciamento demora um ano. E nenhum país tem 150 empresas esperando seu licenciamento para operar no mercado.

Finsiders Brasil: Qual a razão?  A que atribui tal disparidade? Isso se deve a uma característica da União Europeia, tem a ver com a própria União Europeia, com a necessidade de compatibilização de legislações? 

JC: É um pouco por aí, são vários fatores. Em primeiro lugar, devemos entender que a União Europeia não é uma federação como é o Brasil. Ela é um conjunto de países que têm níveis de concorrência diferentes, reguladores com predisposição e vontade diferentes. Isso faz com que, do ponto de vista de concorrência e de pressão para a inovação e abertura do mercado, haja várias velocidades entre os diferentes estados.

No Brasil, o Banco Central lança uma nova regra, um novo normativo e, de imediato, todos os estados e todas as instituições têm de adotar. Na Europa, a Comissão Europeia tem um projeto, encaminha ao Parlamento Europeu, que publica uma regulação ou uma diretriz. Normalmente ele edita uma diretriz, que não é de aplicação direta; é preciso o governo de cada país transpor a diretriz para a legislação local.

Mas o mais importante não está na lei. O mais importante está nos atores de mercado e no regulador (ou Banco Central) de cada país. No caso de Portugal, por exemplo, o regulador é muito ortodoxo e muito conservador. Por isso, perdeu ao longo destes últimos tempos algum conhecimento tácito de mercado. A maioria dos seus quadros nunca trabalhou no setor financeiro – são políticos, advogados ou consultores.

Finsiders Brasil: E em outros países?

JC: De fato, não é um caso único na Europa. Podemos dizer que no plano da concorrência, tem problemas semelhantes na Bélgica. Também na Polônia, onde há um duopólio. Em Portugal existe o monopólio de uma empresa com mais de 95% de participação de mercado. E é aqui é que reside a grande diferença entre Portugal e o Brasil, ou seja, o mercado se dinamiza, se movimenta em conjunto. Vemos uma Abipag, vemos outras associações e a própria Febraban colaborando com a Abipag. Isso acontece nos Estados europeus, mas sem a vontade do regulador, sem o envolvimento, sem o conhecimento. E sem um curso com objetivos concretos, específicos, é muito difícil. E, vocês, aqui no Brasil, apesar do Banco Central não ser perfeito, contam com todas estas qualidades. Estou muito admirado com a qualidade e a capacidade do seu Banco Central.

Finsiders Brasil: Apesar desse avanço do Banco Central brasileiro, várias vezes se faz referências à legislação europeia. O que há na legislação, na regulação europeia que poderia ser aproveitado aqui?

JC:  A regulação europeia é uma boa regulação, tem boas bases. O problema está no que eu falei antes: que cada país tem uma margem de discrição e de abordagem. Nós chamamos “proporcionalidade”. Ou seja, a forma como o Banco Central encara um banco, ou uma instituição de pagamento, que não podem ser vistos da mesma forma, pois são empresas com dimensões muito diferentes e a abordagem do risco.

Se uma determinada lei ou regulamento apresenta muito risco, eu tenho que ser mais estrito; se apresenta um risco baixo, eu posso ser mais flexível. As leis na Europa, nomeadamente a PSD 3 e PSR (que tratam da melhora da segurança dos meios eletrônicos, do funcionamento do Open Banking e de serviços não bancários aos provedores de serviços de pagamentos) apresentam algumas novidades interessantes. Elas podem ser úteis num país como o Brasil, que tem um Banco Central engajado. E ainda é uma federação onde uma lei se aplica por igual em todos os estados. A regulação europeia pode apresentar grandes novidades e uma boa referência para poder seguir determinados modelos.

Mas deixe-me dizer que a Europa já tem um Pix, que se chama SCT Inst. Não funciona. A Europa descobriu agora o BNPL (buy now, pay later). O Brasil tem pagamento fracionado faz 40, 50 anos. Na Europa isso agora é novidade. O Euro digital tem uma proposta de valor que não vai funcionar. O Open Banking no Brasil tem cerca de 30 milhões de usuários. Na Europa não creio que tenha nem três milhões de usuários. Portanto, nesse sentido, os regulamentos e as leis podem ser bons, mas a aplicação falha.

Finsiders Brasil: Então, o que é que nós podemos aproveitar dessas regulações?

JC: Eu acho que o Open Finance, com o novo quadro da PSD 3 e da PSR, traz algumas oportunidades. Nomeadamente, quanto ao Open Finance, ao Open Banking, essas regulações estabelecem critérios de acesso dos prestadores de serviços de pagamentos e instituições de pagamento em que é proibido aos bancos limitarem esse acesso. Portanto esta nova regulação vai trazer limitações a essas proibições, esses obstáculos. Tem a instituição de uma mesa de controle central por parte do consumidor junto do seu banco, onde ele pode facilmente gerir e administrar seus consentimentos.

Assim, imagine que, hoje, eu dou consentimento a uma empresa que vende sapatos para dar pagamento fracionado; amanhã comunico a meu banco que não quero mais. Também institui alguns prazos em determinadas tipologias de consentimento, em que a validade de um consentimento tem um limite temporal que permite ao consumidor dizer sim hoje e não se preocupar mais, porque dentro de três, seis meses esse consentimento desaparece. Nesse sentido, creio que a regulação traz novidades muito interessantes. Outras novidades: por exemplo, no acesso a dados financeiros consegue-se limitar os que o consumidor fornece àqueles estritamente necessários para uma instituição fornecer seu serviço. E, não menos importante esclarece a necessidade que uma instituição de pagamento tem em ter a capacidade de gerir com segurança esses mesmos dados.

Quanto a fraudes dos pagamentos, tenho um sentimento um pouco ambíguo, porque acho que a PSD 3 e a PSR estão correndo atrás de tipos de fraudes que já não são novidades. A diretriz de serviços de pagamento é revista a cada três anos e uma nova versão em média sai a cada sete, mas a criatividade e engenho dos intervenientes de mercado é incrível! Por outro lado, a PSD 3 para o spoofing, para a camuflagem do beneficiário e para a engenharia social, traz uma nova série de medidas muito interessantes. Há um problema, porém, porque obriga-se as instituições de pagamento a instituírem essas medidas de prevenção, mas o ônus da indenização e do custo da fraude recai sobre a instituição. Agora, na Europa cada transação significa uma receita média para a instituição de pagamento 50 cêntimos de euro, ou equivalente a 2 ou 3 reais.

Como pode a instituição de pagamento ser responsável pela incúria e negligência do consumidor perante estes esquemas de fraude? Como se pode pagar o valor de uma venda de varejo de R$ 1.000, vamos supor, ganhando 50 centavos, ou 2 ou 3 reais com cada transação? É aí que, na opinião da ANIPE, a PSD 3 e a PSR pecam por excesso na questão das fraudes. Estão colocando muito foco na proteção do consumidor criando um risco moral sério, porque eu, enquanto consumidor, se achar que, faça eu o que fizer, a instituição de pagamento vai pagar e vai reembolsar, eu não tenho que ter cuidado nenhum. Esse também é um problema que temos. Genericamente, poderíamos passar horas dando mais exemplos, mas acho que isto explica bem algumas das desvantagens.

Finsiders Brasil:  Você mencionou o risco moral, mas os riscos são uma “família” extensa. Como você compara o Brasil aos países da União Europeia e Portugal em termos de gestão de riscos e de regulação prudencial no âmbito de sistemas de pagamento?

JC: Nesse sentido, temos de separar os requisitos (ratios) de recursos próprios de cada instituição, que estão bem tabulados com algumas limitações e alguns desafios. Mas, por outro lado, temos de olhar também para as garantias e colaterais que são pedidos para a participação no sistema. Quanto ao primeiro ponto, entendo que a União Europeia fez bem de introduzir requisitos mínimos e não mencionar requisitos máximos para a licença de serviço na adquirência. Como também o fez na emissão de cartão, em serviços de iniciação de pagamentos, de informação de contas e nas remessas de imigrantes.

Portanto, nesse sentido, na Europa, exige-se um capital social mínimo, solicita-se a autorização ao Banco Central e esse capital é suficiente para ser dada a autorização. Depois, não logo no início, mas depois, nos primeiros anos, procede-se a um controle muito mais estrito dos recursos próprios, ou seja, da cobertura que a instituição tem de recursos próprios para o nível de transações que pratica. Aqui, no Brasil, acho que é um pouco mais ao contrário: você tem requisitos mínimos, mas está-se tentando instituir requisitos máximos de acordo com o modelo de negócio. Como pode uma empresa que vai ter um volume negócios de 500 milhões de reais ter um capital social mínimo de menos de 1 milhão? Não faz sentido. Mas a abordagem europeia, aqui, pode ajudar.

Na prática, o que conta, passado o momento de licenciamento, é a cobertura dos recursos próprios para o tipo de transação praticado. Existem algumas regras novas que a PSD 3 e PSR vão trazer. Hoje em dia há três critérios de fundos próprios cumulativos, que são obrigatórios, a serem substituídos, no futuro, por um único critério. O que acontece é que o seu capital social inicial pode já não ser suficiente do ponto de vista do risco, dos colaterais e das garantias.

Nesse sentido, vejo que o mercado brasileiro é muito mais ágil e pode dar uma lição muito maior à Europa. Atualmente, na Europa, para ter acesso à câmara de liquidação exige-se apresentar garantias e colaterais que muitas vezes são de um montante inviável para pequenas instituições de pagamento. Para se ter uma ideia, para transacionar 400 milhões de reais, há um ano requeria-se garantias em torno a 100 ou 150 milhões de reais. E muitas vezes essas garantias têm um colateral líquido por trás, ou seja, é preciso ter o dinheiro em espécie na conta para ter esse colateral. Isso é um entrave enorme ao surgimento de novos atores, novas instituições. Portanto, nesse sentido, para se obter a licença, em tese, na Europa, os índices de fundos próprios são um pouco mais fáceis. Isso porque passam o ônus para depois, para os primeiros anos de atividade.

Mas o risco e a colateralização do acesso ao sistema de pagamento, no Brasil, funcionam bem melhor. Não é tão pesado para uma fintech que quer entrar no sistema. Por isso, para dar um exemplo, haver, hoje, cerca de 150 instituições de pagamento e moeda eletrônica na fila do Banco Central do Brasil para ter licença, é ficção científica na Europa! Nos 25 países da UE, não têm, com certeza 150 instituições solicitando autorização. Por isso o Brasil é um caso de sucesso na abertura e no acesso aos sistemas de pagamentos. O Brasil tem um Banco Central engajado, interessado e um ecossistema muito vibrante.

Finsiders Brasil: Como se poderia explicar essa situação, teria a ver assim com características do europeu mesmo?  Tem uma “psicologia social” envolvida nessa questão?    

JC: Tenho duas visões relativas a isso. O europeu chegou a um ponto de bem-estar em que está mais preocupado em proteger o que tem, do que em construir de novo. Isso é um problema, é defender o status quo, deixando de lado a inovação. Isso dura o que dura. Por outro lado, o enquadramento jurídico dos pagamentos na Europa é muito complexo. Entre leis, decretos, regulamentos europeus, diretivas europeias, avisos e normativas do Banco Central, cartas circulares do Banco Central, só Portugal, por exemplo, há mais de 100 instrumentos regulatórios constituindo o marco do sistema de pagamentos.

É impossível administrar tanto instrumento regulatório! E é preciso notar que um país europeu depende, em primeira instância, do Banco Central local, depois do Banco Central europeu e tem ainda o Parlamento europeu legislando sobre o que se passa no seu país. E tem ainda o Parlamento local, em Portugal a Assembleia da República, legislando sobre o país e ainda tem os institutos de prevenção de lavagem de dinheiro e a autoridade bancária europeia legislando. Já no Brasil, uma instituição de pagamento tem de responder a um, dois, no máximo três reguladores do mesmo país e que estão articulados.

Uma instituição, por exemplo, na Alemanha tem de responder a seis, sete reguladores diferentes, com leis que muitas vezes são cumulativas às que saem da UE com a Assembleia local, à Assembleia da República ou ao Senado local. Esse é um problema. Assim, resumindo, proteger o status, o conservadorismo por um lado, e por outro a profusão, o exagero legislativo levaram a que a Europa tenha passado, provavelmente, de o mercado nº 1 no seu conjunto, no início do Século XXI, ao quarto quinto sexto mercado – e o Brasil ter ultrapassado a Europa nos meios eletrônicos de pagamentos.

*O jornalista viajou a Brasília a convite da Abipag.