A tecnologia de registros distribuídos (DLT, na sigla em inglês), popularmente conhecida como blockchain, está se solidificando como um catalisador de transformações profundas nos mercados financeiros globais. Sua implementação no mercado de capitais não apenas viabiliza a emissão de ativos digitais de maneira mais transparente e automatizada, mas também promete democratizar o acesso a investimentos, otimizar processos operacionais, reduzir custos e, consequentemente, impulsionar a liquidez.
No Brasil, apesar do reconhecimento pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) da validade e do potencial da tokenização, o arcabouço regulatório existente ainda apresenta limitações. E, em certa medida, traz um desalinhamento com a natureza intrinsecamente inovadora dessa tecnologia disruptiva.
Atualmente, a principal via para a estruturação de emissões tokenizadas é a Resolução CVM nº 88. A norma nasceu originalmente para regulamentar o crowdfunding de empresas de pequeno porte. Em 2023, a regra teve sua interpretação estendida, em 2023, por meio dos Ofícios 4 e 6 da Superintendência de Securitização (SSE). Com isso, passou a abranger tokens lastreados em recebíveis. Contudo, essa adaptação é reconhecidamente uma solução provisória, dadas as restrições impostas pela própria Resolução 88.
A norma estabelece um teto de captação de R$ 15 milhões por oferta, limita o perfil dos emissores, assim como veda um balcão organizado para o mercado secundário. Tais exigências, embora pertinentes ao seu propósito original, impõem entraves significativos à estruturação de operações mais complexas e de maior volume. Entre eles estão as de dívida estruturada ou aquelas lastreadas em ativos mais sofisticados, nas quais a natureza da norma demonstra suas limitações para a tokenização.
A própria CVM, em diversas manifestações, demonstra plena consciência do potencial transformador da tokenização. O Parecer de Orientação nº 40/2022, por exemplo, consolidou o entendimento de que determinados tokens, dependendo de sua configuração jurídica e econômica particular, podem ser qualificados como valores mobiliários. No entanto, a ausência de um marco regulatório específico e abrangente para ativos digitais impede que haja plenamente o reconhecimento e uso da blockchain como uma infraestrutura formal do mercado de capitais. Essa lacuna, paradoxalmente, relega a tokenização a arranjos que, embora criativos e inovadores, por vezes carecem de uma solidez jurídica ideal.
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Caminhos
Diante desse cenário dinâmico, o caminho para o avanço regulatório é claro e multifacetado. A primeira e talvez mais fundamental medida seria o reconhecimento formal dos registros distribuídos como uma infraestrutura válida e segura para as funções de escrituração, custódia e liquidação de valores mobiliários. Isso permitiria que a tecnologia blockchain assumisse um papel central que atualmente é predominantemente reservado a instituições centralizadas.
Em paralelo, a segunda frente estratégica envolveria a criação de uma categoria normativa autônoma e específica para ofertas públicas tokenizadas. Essa nova regulamentação precisaria ser desvinculada do regime de crowdfunding e ter regras flexíveis e proporcionais à sofisticação e diversidade das operações tokenizadas. Por fim, uma medida mais imediata e pragmática seria a flexibilização pontual da Resolução 88. Por exemplo, permitir a majoração do limite de captação por oferta e o afastamento da janela de 120 dias entre cada oferta.
Esse movimento de vanguarda não seria isolado no cenário global. Jurisdições financeiras proeminentes como Suíça, Liechtenstein e Cingapura já implementaram marcos regulatórios que explicitamente reconhecem a emissão e a negociação de tokens representativos de dívida ou ações em redes distribuídas. A União Europeia, com o avanço do Regulamento MiCA (Markets in Crypto-Assets) e o DLT Pilot Regime, está pavimentando o caminho para a negociação de instrumentos financeiros em ambientes totalmente tokenizados. Esses exemplos internacionais demonstram, então, a viabilidade de harmonizar a segurança jurídica e a proteção ao investidor com a inovação tecnológica.
No Brasil, há sinais promissores de que o regulador está atento e responsivo a essa evolução. Recentemente, a CVM iniciou estudos aprofundados sobre a possibilidade de substituir a figura de intermediários tradicionais por soluções baseadas em contratos inteligentes (smart contracts) e blockchain. Tal mudança, se efetivada, tem o potencial de reconfigurar a arquitetura do mercado de capitais brasileiro, tornando-o mais eficiente e acessível.
Inovação versus regulamentação
A tokenização, longe de ser uma promessa distante, já é uma realidade com impacto tangível. Empresas têm reportado reduções de custos operacionais superiores a 60% em operações de antecipação de recebíveis e outros ativos. O fracionamento de títulos, a rastreabilidade intrínseca das transações e a automatização de obrigações por meio de contratos inteligentes estão transformando a experiência do investidor.
No entanto, o arcabouço regulatório permanece, em certa medida, ancorado em uma lógica analógica. A inovação tecnológica avança a passos largos, superando a velocidade da regulamentação. Esse descompasso crescente entre a prática de mercado e as normas vigentes acarreta um aumento da insegurança jurídica. Esse é um fator que, por sua vez, desestimula o pleno desenvolvimento e a adoção em larga escala desse mercado promissor.
O grande desafio que se impõe à CVM é conceber e implementar uma regulação ágil e robusta, capaz de acomodar os diversos modelos tecnológicos que emergem, sem jamais comprometer os pilares fundamentais da proteção ao investidor e da integridade do mercado. Isso exige um equilíbrio delicado, clareza normativa e, acima de tudo, coragem institucional para revisar e, se necessário, redefinir estruturas tradicionais.
A tokenização não é mais uma visão futurista, mas uma demanda premente do mercado. O Brasil detém todas as condições necessárias para se posicionar como um líder global nessa transformação digital do mercado de capitais.
*Sócio do escritório Carvalho Borges Araujo Advogados