A Cora, uma Sociedade de Crédito Direto (SCD) que oferece cartões e empréstimos para empresas, tem dois grandes desafios para este ano: lidar com a alta inadimplência –as provisões para perdas superam mais do valor dos 50% dos empréstimos concedidos – e melhorar os controles internos.
O primeiro, diga-se de passagem, é um desafio imposto pelo cenário macroeconômico a diversas outras fintechs de crédito (ver abaixo em “Fitch vê risco generalizado no mercado”); o outro é uma lição de casa que deve ser feita o quanto antes. A opinião é de Eric Barreto, professor de finanças do Insper, onde leciona sobre Fintechs e Inovação em Serviços Financeiros.
A Cora acaba de retificar o balanço que havia enviado ao Banco Central em março (ambos estão disponíveis para download e podem ser comparados no final desta reportagem). Nele, a própria administração reconhece as fragilidades: “A Cora SCD realizou um processo de conciliação, visando esclarecer apontamentos e fornecer informações complementares para a análise. Durante o processo, além da apresentação de informações complementares e documentação suporte que permitiram um melhor entendimento sobre as transações e saldos, também foram estabelecidas medidas para aprimorar os controles internos, de modo a garantir a qualidade e integridade das informações financeiras no futuro.”
Desta vez, o auditor não se eximiu de dar opinião, como na primeira versão – mas apesar dos ajustes feitos pela Cora, a auditoria manteve duas ressalvas e a preocupação com a continuidade dos negócios. Os prejuízos acumulados até 31 de dezembro foram de R$ 164,8 milhões – somente no ano passado foram R$ 131,7 milhões. “Essas informações denotam a necessidade de que a Diretoria continue adotando medidas no sentido de salvaguardar sua continuidade operacional”, diz o parecer da BDO RCS Auditores Independentes.
“Parece que a Cora deu um passo maior do que a perna e está correndo atrás do prejuízo agora”, diz o professor do Insper.
Alerta anônimo
Após receber um alerta anônimo por email sobre a situação da Cora, Fintechs Brasil procurou o professor para analisar os números da fintech, bem como a própria Cora e também o Banco Central – este último alegou que “não comenta situações específicas de entidades reguladas”.
Igor Senra, fundador e CEO da Cora, atendeu prontamente nossa solicitação, demonstrando boa vontade em esclarecer os fatos. Ele, inclusive, havia publicado recentemente uma carta no seu perfil do LinkedIn assumindo que estavam passando por uma reestruturação estratégica, que entre outras coisas resultou em uma demissão de 59 pessoas.
“O cenário de mercado continua difícil e ainda há muita incerteza em relação a uma reversão… Enfrentar essa realidade exige que a Cora seja ainda mais focada. Isso passa pela redefinição de prioridades, escopos e times, escolhas estratégicas, para nos concentrarmos nas iniciativas que entregam mais valor a nossos clientes e à Cora. Essas medidas estão em linha com o nosso objetivo de continuar crescendo e conseguirmos ser lucrativos no ano que vem”, disse.
Preocupante
Além dos prejuízos acumulados, há outro ponto de atenção. “Considero preocupante o fato de que mais que boa parte das operações de crédito, R$ 24,6 milhões, já estejam em níveis de risco mais alto (ratings F, G ou H); a provisão para perdas de crédito, de R$ 23,2 milhões, representa mais da metade do saldo de empréstimos, que terminou o ano em R$ 45,8 milhões”, diz o professor do Insper.
Em relação a isso, Senra admite que a Cora concedeu mais crédito no começo da sua vida de SCD (desde 2020) para “testar o motor”: “Fomos mais agressivos, mas de um ano para cá aprendemos a calibrar melhor as aprovações”. O CEO diz que foram “muito conservadores” nas demonstrações financeiras, colocando em “D0” as expectativas de todas as perdas futuras com crédito.
Em relação à reapresentação do balanço, Senra explica que já estava programada, pois mudaram de auditoria em novembro e não deu tempo de passar todas as informações à nova (a BDO) até a data limite de entregar o balanço para o BC. Ele afirma que o BC estava ciente de tudo e admite que a segunda versão ainda não é a ideal – segundo ele, ainda faltam algumas melhorias.
“Eles explicam no material que houve reestruturação na área de finanças – para uma fintech enxuta, perder 2 ou 3 funcionários chave próximo do processo de auditoria pode ter dificultado bem as coisas. Se a empresa já tivesse processos documentados, com controles e sistemas funcionando, certamente o problema seria menor”, opinou Barreto.
O balanço reapresentado tem os mesmos números, e das duas ressalvas apontadas, a que tomou mais espaço no relatório trata de um número de valores a pagar, que está dentro da rubrica “outros”, no passivo – valores de despesas administrativas rateados entre as empresas do grupo. “Rateio é sempre um processo subjetivo, então, a empresa precisa ter controles bem claros para definir se aquela despesa é dela ou da parte relacionada. Uma despesa pode ser rateada por quantidade de funcionários alocados em cada empresa/área, pela quantidade de metros quadrados que cada parte utiliza de um imóvel, pela quantidade de serviços consumidos por cada uma ou outros critérios”.
Porém, Barreto ressalta que apesar do resultado negativo, a Cora gerou caixa operacional, e um salto no saldo de aplicações interfinanceiras de liquidez, de R$ 288 milhões para R$ 890 milhões. “Elas são bem importantes, pois é nessa rubrica que devem estar depositados os títulos públicos de clientes que depositaram seus recursos em contas pré-pagas – e o valor de depósitos é bem próximo do valor das aplicações”, afirma.
IP ou SCD?
Outro complicador da situação contábil da Cora é o fato de ela ter começado como Instituição de Pagamento (IP) e no meio do caminho, ter aberto uma SCD. Em 2019, a lei permitia que uma IP começasse a operar sem a licença do BC – mas a ideia, segundo Senra, sempre foi ter conta para pessoas jurídicas e oferecer crédito, o que uma IP não pode fazer no sentido mais amplo.
Ao mesmo tempo, uma SCD tinha restrições para emissão de cartões. Então começar como IP foi para ganhar tempo, mas também para poder operar cartões. No momento em que a SCD foi aprovada (2020), ambas continuaram a operar em paralelo e quando a IP atingiu um volume de negócios que requeria uma licença, a legislação havia mudado e a Cora decidiu “tombar” aos poucos toda a operação da IP para a SCD – que em 2021 passou a operar cartões. Com isso, o processo de licenciamento da IP foi interrompido. Segundo Senra, em breve a IP passará a ser apenas uma empresa de tecnologia.
Fitch vê risco generalizado no mercado
Em meados de março, a agência de avaliação de riscos Fitch Ratings soltou um paper apontando o aumento da inadimplência de cartões de credito, que atingira mais de 8%, e de outras linhas de crédito sem garantia – o que para a agência representava um risco muito elevado para fintechs e bancos digitais com atuação nesse tipo de empréstimo.
“A permanência da pressão é resultado do atual cenário macroeconômico e deve ficar ainda mais evidente para emissores menores e/ou pouco diversificados”, disse a Fitch.
Nos últimos três anos, o volume originado em cartões de crédito aumentou 71,6%, de acordo com o Banco Central, enquanto o saldo em carteira ficou 77% maior, representando 15,5% do crédito ao consumo no Brasil, de 13,9% em 2019.
A participação de fintechs no mercado de cartões de crédito cresceu acentuadamente, para 16,1% em 2022, de 9,9% em 2019. Os bancos digitais de médio porte passaram a representar 14,9%, de 13,5%, enquanto os bancos sistemicamente importantes perderam terreno, de 75,6% para 67,3%.
“O crescimento do volume de clientes de alto risco foi significativamente maior nas fintechs (235,8%) do que nos bancos tradicionais (66,9%). Após a forte alta, clientes de baixa renda representavam 48,8% da dívida de cartão de crédito em circulação de instituições financeiras não bancárias em 2022, em comparação com 23,9% dos bancos”.
Para a Fitch, fintechs muito focadas em cartões provavelmente continuarão com fraca qualidade de ativos e margens pressionadas em 2023, como resultado de maiores necessidades de provisionamento e custos de captação. “O elevado custo de captação de fintechs também é uma clara desvantagem competitiva, e o cada vez menor apetite do mercado para levantar capital pressiona cada vez mais os resultados e a capitalização dessas entidades.”
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