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Entrevista - Fernando Fontes/CEO da CERC: "Registro de duplicata eletrônica vai alavancar crescimento das fintechs de crédito para PMEs"

A  Resolução 339, aprovada pelo Banco Central em 24/8 para padronizar o registro de duplicatas eletrônicas, vai alavancar o crescimento das fintechs de crédito para PMEs. Ou seja, vai colocá-las definitivamente no mapa da concorrência.

A opinião é de Fernando Fontes, co-fundador e CEO da registradora CERC. “O desconto de duplicatas estava nas mãos de bancos com agências, que conseguem cobrar boletos em grande escala”, disse o executivo ao portal Fintechs Brasil. Para ele, isso é o que explica o fato de as fintechs voltadas para empresas não terem alcançado o mesmo sucesso do que as para pessoas físicas.

A nova regra não vai favorecer apenas os negócios das fintechs para empresas, mas também a própria CERC, claro – a empresa vem registrando duplicatas eletrônicas desde sua regularização, em 2018, mas como o registro não era obrigatório, os volumes não passam de R$ 6 bilhões por mês. Em recebíveis de cartões, a CERC registra em torno de R$ 75 bilhões mensais – foram R$ 1,3 trilhão nos últimos doze meses.

Fundada em 2015, a CERC é a primeira registradora especializada em recebíveis autorizada a funcionar pelo Banco Central. Com a nova regulamentação de recebíveis de cartões, que entrou em vigor em 2021, a CERC passou a ser um dos players desse mercado,. Os seus concorrentes são Núclea (antiga CIP), TAG, Central de Registro de Direitos Creditórios (CRDC) e B3. Além de recebíveis de cartões e duplicatas, a CERC registra outros ativos, como Certificados de Depósito Bancário (CDB), Cédula do Produto Rural (CPR).

Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

FINTECHS BRASIL: Por que a Resolução 339 vai ampliar a oferta de crédito para PMEs?

FERNANDO FONTES: Apesar de muito antiga, a duplicata (título que é lastreado em notas fiscais de vendas) ainda é extensivamente usada no Brasil. Para se ter uma ideia, enquanto os cartões de crédito movimentam cerca de R$ 3,5 trilhões por ano, as duplicatas movimentam mais de R$ 11 trilhões.

Mas com a digitalização da economia, cada vez menos os bancos podem checar o lastro verdadeiro das duplicatas – ou dos boletos, que atualmente são a representação virtual das duplicatas. Por isso, acabam dando um limite aleatório de crédito para os clientes; a duplicata virou “conforto moral”, não funciona mais como garantia. O registro vem resolver dois problemas.

FINTECHS BRASIL: Quais são eles?

FERNANDO FONTES: O primeiro problema que resolve é o do lastro. A duplicata registrada comprova que aquele título de fato corresponde a uma venda mercantil, com elevada probabilidade de ser real. O segundo é acabar com o uso em duplicidade das duplicatas.

Duplicatas duplicadas

FINTECHS BRASIL: Como assim?

FERNANDO FONTES: Quem entra em um banco para descontar 10 duplicatas pode descontar as mesmas 10 duplicatas de novo em outro banco. E nenhum dos bancos fica sabendo, pois cada um tem seu próprio sistema que não se comunica com os dos concorrentes. Assim, algumas empresas acabam se alavancando mais do que deveriam, não existe um controle para evitar a dupla utilização dessas duplicatas como garantia. E o “sacado” fica sem saber qual boleto pagar… São disfuncionalidades que não têm a ver com risco de crédito, isso o banco sabe avaliar e precificar; os problemas são legais, operacionais e de assimetria de informação – que a nova resolução vem para resolver agora.

FINTECHS BRASIL: A prática de descontar a mesma duplicata várias vezes é usual?

FERNANDO FONTES: Não, empresas fazem isso quando estão em vias de quebrar, quando estão muito alavancadas, sem dinheiro para pagar fornecedores, funcionários… o empresário quando entra nesse esquema de “bicicleta” não acha que vai capotar, mas frequentemente capota. A centralização de registro de duplicatas vai evitar esse tipo de fraude, vai funcionar como um cartório de imóveis.

Players digitais

FINTECHS BRASIL: E como as fintechs vão se beneficiar?

FERNANDO FONTES: Até agora o desconto de duplicatas, uma das linhas de crédito mais relevantes para a cadeia produtiva no Brasil, estava concentrado nas mãos de grandes bancos com grandes redes de agências, com poder de emitir e cobrar boletos em grande escala.

Agora isso vai mudar, e para melhor. O boleto agora passa a ser só um meio de pagamento, como cartão, PIX, DREX… isso quer dizer que quem não faz cobrança pode fazer crédito usando duplicata, não precisa operar cobrança para entrar no negócio de crédito para PME com garantia.

A desvinculação da duplicata (como título de crédito) do boleto (como meio de pagamento) vai abrir o mercado para esses outros players mais digitais que não são competitivos em cobrança, mas podem ser muito competitivos em crédito para PMEs.

Hoje quando o banco emite um boleto, não o vincula diretamente a uma nota fiscal; já a duplicata registrada será vinculada à venda, ao usar a infraestrutura que monitora quem emitiu, contra quem, quem transportou, se passou em pedágio, barreira… Todo esse “big brother” que existe no Brasil para fiscalizar arrecadação de impostos agora vai ser usado para verificar a veracidade de uma duplicata, avaliar sua consistência.

Uma garrafa de água mineral, por exemplo, tem inúmeros fornecedores por trás, desde o fabricante do plástico, do rótulo, até o caminhão que transporta – é uma extensa cadeia de contas a receber, um dá prazo para o outro, o que gera vários recebíveis. Em vez de anotar as duplicatas em um livro como se fazia antigamente, vamos anotar no sistema eletrônico e associar a duplicata a sua respectiva e única nota fiscal.

Concorrência

FINTECHS BRASIL: Isso deve estar incomodando os grandes bancos. Eles podem boicotar essa concorrência?

FERNANDO FONTES: Ninguém é obrigado a registrar suas duplicatas, mas para usá-las como garantia de empréstimo ou para antecipar os valores a receber precisa. O BC tem um cronograma que estipula quando cada empresa tem que se enquadrar, de acordo com seu faturamento.

Se um banco quiser oferecer crédito a um cliente sem pedir suas duplicatas em garantia, cabe ao banco correr o risco, e ao cliente aceitar as condições. Acontece que um empréstimo com garantia é mais vantajoso para o tomador. E a duplicata é a melhor e mais abundante garantia – e muitas vezes, a única que uma PME pode oferecer como contrapartida. A dificuldade de aceitar duplicatas como garantia, pela dificuldade de cobrar, limitou a atuação das fintechs de crédito a PMEs a modalidades sem garantia, que são mais arriscadas e não têm o poder de alavancar as operações. Agora isso vai mudar.

FINTECHS BRASIL: Por que o BC é quem vai regular um título mercantil, e não a Comissão de Valores Mobiliários (CVM)?

FERNANDO FONTES: De fato esta é a primeira vez que o BC regula um instrumento emitido por um ente não regulado por ele, e que pode ser negociado não apenas com bancos. É uma nova função, de regulador de instrumento financeiro, e não de regulador de um emissor. A duplicata é muito tipificada como título de crédito e não valor mobiliário, por isso não foi parar na seara da CVM.

Nome chique

FINTECHS BRASIL: Se é algo tão importante assim para ampliar e baratear a oferta de crédito para as PMEs, por que demorou tanto a sair? E ainda falta aprovar a convenção das escrituradoras, como já existe a dos registradores de arranjos de pagamentos (cartões)….

FERNANDO FONTES: O BC preferiu esperar aparar as arestas do modelo de recebíveis de cartões, que finalmente está funcionando bem após dois anos. O BC incorporou as lições aprendidas, copiou diretrizes e comandos dos cartões para o mundo das duplicatas. A regra já larga mais completa e robusta. No caso dos recebíveis de cartões, os volumes cresceram, e caíram os spreads – ao contrário do que ocorreu nas demais operações de crédito. O mercado hoje tem mais apetite e há maior competição, com a participação de novos players que não tinham acesso, como fintechs e FIDCs. Sabemos que o BC vai acompanhar o funcionamento e pode chegar à conclusão de que é preciso algum ajuste. Mas já é um grande avanço. Só falta agora encontrar um nome novo e “chique” para batizar as duplicatas 2.0!

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