O pool de investidores anjos que anunciou, em agosto, aporte de R$ 5 milhões para fintechs, já escolheu seis. Agora, está finalizando a seleção de mais dez- delas sairão outras quatro para receber recursos e mentoria. A seleção será na terceira reunião do grupo, no começo de dezembro.
Segundo João Bezerra, líder do comitê de avaliação, o pool já comprometeu 30% do valor nas primeiras seis fintechs. “Recebemos mais de 35 propostas em dois meses, e até março devemos ter um total de 20 fintechs investidas. Pena que não temos, hoje, capacidade para analisar mais propostas, porque tem muita coisa boa sendo criada no Brasil”. Bezerra diz que o pool pode fazer nova rodada de captação para atender mais fintechs no ano que vem. O grupo é uma das verticais da Bossa Nova Investimentos.
Bezerra é engenheiro e se aposentou do Itaú em 2018 depois de 36 anos na instituição, onde foi diretor de telecom, CIO de cartões e de seguros, head de qualidade e de várias outras áreas. Ele decidiu sair dois anos antes do determinado pelo estatuto do banco, para conhecer de perto as tendências mais avançadas de empreendedorismo no mundo. “Fui para o Vale do Silício, Israel, Portugal, China, Estônia… passei 2019 fazendo isso. Ainda bem, porque em 2020 certamente seria impossível”. No começo deste ano, de volta ao Brasil, procurou João Kepler, CEO da Bossa Nova, e se associou ao ecossistema como investidor anjo.
Depois dessas viagens, Bezerra voltou ainda mais visionário e animado com o futuro. Além de falar sobre o pool de fintechs, Bezerra divide um pouco do que viu pelo mundo na entrevista exclusiva ao Portal Fintechs Brasil. Leia a seguir os principais trechos:
FINTECHS BRASIL – Por que entrou no grupo de investidores em fintechs da Bossa Nova?
JOÃO BEZERRA – O pool fintechs surgiu de conversas de corredor. Percebemos que a procura pelo segmento estava crescendo, e as oportunidades idem. Queremos ajudar essas fintechs a decolar, e decolar junto. Mas não se trata apenas de fazer dinheiro. Queremos que tragam algo que possa acrescentar, modificar o ecossistema financeiro. Quando criamos o pool, pensamos em um mundo superinspirado pela frente, não só na fintech como um fim em si. Por exemplo, uma das fintechs que escolhemos, a Medicinae, conseguiu, com a ajuda jurídica do escritório de advocacia Pinheiro Neto, criar um modelo digital que permite antecipação de recebíveis das clínicas médicas, o que era quase impossível devido a questões com planos de saúde. Com isso, essas clínicas mais acesso a crédito mais barato e conseguirão baixar os preços dos seus atendimentos; por consequência, mais pessoas terão acesso à saúde. No mínimo é sobre resolver um problema, não é só sobre “exit”.
FINTECHS BRASIL – Quem escolhe as fintechs para investir?
JOÃO BEZERRA – Temos um conselho de nove investidores da Bossa Nova nesse pool, todos egressos do mercado financeiro: Marco Antunes (ex-CEO do BMG), Jackson Gomes (ex-CEO do Banco Original), Eduardo Mazon (CIO do BMG), Prisicila Drebes (CEO das Lojas Lebes – eles tem uma financeira, e ela faz parte da Endeavor), Rodolfo Froes (do Banco Fator), Rodolfo Fucher (presidente da Associação Brasileira das Empresas de Software), Carlos Augusto Oliveira (expert em PIX), além do João Kepler e eu. A Bossa Nova já tem um modelo de governança vencedor, que ajuda a entrada das startups no mercado. Às vezes a ideia da fintech é espetacular, mas deixa a desejar no lado burocrático – muitas sofrem até para tirar uma certidão no cartório. Além dos nove do conselho, outros investidores podem participar das reuniões do comitê e aportar recursos também.
FINTECHS BRASIL – Quais os critérios para decidir em quais investir?
JOÃO BEZERRA – Focamos muito nas que têm um modelo que pode ser escalável, já com algum faturamento. Um dos nossos diferenciais é que, se selecionada, a startup pode contar com nossa mentoria: queremos dar a mão mesmo, ajudar com nosso network, experiência e orientações. Muitas nos procuram exatamente por causa dessa mentoria, que faz muita diferença para elas. Investimos parte do nosso tempo de forma genuína, pois sabemos que assim a startup cresce mais facilmente e gera valor mais rapidamente. Nosso objetivo é investir em empresas que sejam parte do universo fintechs, o que inclui as de softwares, que consigam otimizar negócios relacionados ao serviço financeiro.
FINTECHS BRASIL – Quais as fintechs que já receberam investimentos do pool?
JOÃO BEZERRA – Uma das primeiras foi a Transfeera, acelerada pela Visa, que acaba de ganhar o prêmio revelação do Startups Award 2020. Também escolhemos a Inco (crowdfunding para empreendimentos imobiliários – a última vez que lançou, em cinco minutos vendeu todas as cotas), Stark (uma plataforma que permite apoio e suporte a M&A; imagine um Itaú BBA pequenininho, para quem não tem condição de acessar um grande banco de investimento), a Certus (software de gestão para PMEs), a Medicinae e o Transferbank (de câmbio para empresas). E ainda conseguimos fazer uma seleção geograficamente diversificada – duas são de Curitiba, uma do Rio, uma de São Paulo, uma de Joinville e outra de BH. Importante dizer que não queremos ser sócios, queremos ser investidores – mas não investimos em apresentações de powerpoint. Tem que funcionar na prática.
FINTECHS BRASIL – O carimbo fintechs engloba muitos subsegmentos hoje. Quais são os preferidos do pool?
JOÃO BEZERRA – Não temos preferidos. Quando olhamos para fintechs, não olhamos apenas banco digital e wallet. Tem outros segmentos, desde meios de pagamento (aí incluídos mobile, pontos de venda, gateways de pagamentos…), crédito (antecipação de pagamentos, marketplace, consórcios, renegociação de dívidas), regtechs (soluções para risco de crédito, compliance, antifraude), biometria (identidade para acesso a contas), backoffice (contabilidade e antecipação financeira, precificação), criptomoedas, câmbio, insurtechs, investimentos, finanças pessoais, programas de benefícios, fintechs de BaaS. Segmentamos para poder avaliar e precificar melhor.
FINTECHS BRASIL – Como você vê o futuro das fintechs, nesse novo cenário que se avizinha, com o PIX (sistema de pagamentos instantâneos) e Open Banking no Brasil?
JOÃO BEZERRA – Certamente PIX e Open Banking vão abrir novas oportunidades para fintechs e o número atual, de aproximadamente 700, pode facilmente dobrar no ano que vem. Mas vai haver uma consolidação. O segmento de banco digital, por exemplo, está saturado – aparece muito mais do mesmo.
FINTECHS BRASIL – Onde estão as melhores oportunidades?
JOÃO BEZERRA – Vai ter um grupo de novas fintechs surgindo, cada uma com uma única solução espetacular. Os bancos terão problemas se não começarem a fazer parcerias com essas fintechs.
FINTECHS BRASIL – Quem será o vencedor nesse ringue? Bancos ou fintechs?
JOÃO BEZERRA – Os bancos têm que modernizar seus sistemas operacionais para permitir que as fintechs ofereçam aos seus clientes serviços que eles não têm condições de oferecer. Os grandes bancos fazem tudo em massa. Eles precisarão adquirir a habilidade de administrar um sistema de parcerias com fintechs. Aqui no Brasil, eu digo com conhecimento de causa, tem gente muito inteligente, tem recursos de sobra no mercado financeiro. Os bancos não vão virar uma Kodak (a famosa fabricante americana de máquinas fotográficas populares, que faliu com o advento das fotos digitais). Vão correr atrás.
FINTECHS BRASIL – Mas como os “incumbentes” vão fazer isso?
JOÃO BEZERRA – Os bancos estabelecidos precisam deixar a visão imediatista de lucro e adotar uma visão de médio prazo. Sei que essa é uma discussão difícil com os acionistas. Mas não tem alternativa. Os bancos sabem que é duro transformar sua arquitetura legada para fazer conexões com as novas soluções que estão surgindo. No mundo todo, os entrantes estão investindo em ser marketplaces de APIs financeiros, como o britânico Starling. Os bancos brasileiros também têm que entender que a oportunidade do futuro é ser ‘O’ ponto central. Ao contrário da mentalidade dominante na era industrial, em que as empresas fabricam tudo, controlam tudo e distribuem tudo, na era digital as empresas apenas conectam todo. Temos que incorporar esse mindset. Muito se fala em transformação digital, mas até agora o que temos feito é digitalizar processos. A adquirência , por exemplo, é um processo que somente replica a transferência de dinheiro que já existe desde a Idade Média. Nós colocamos o banco dentro do celular, mas apenas replicamos nos aplicativos tudo o que se faz nas agências físicas. O certo seria fazer como a China, jogar fora o processo e construir outro do zero.
FINTECHS BRASIL – E qual o papel dos bancos centrais nessa evolução?
JOÃO BEZERRA –Todos os BCs do mundo, de Londres a Cingapura, estão se transformando em hubs fintechs, dando grande incentivo ao empreendedorismo, atraindo talentos e capital de risco, agindo como reguladores pro ativos, empurrando as transformações e não só respondendo a elas. O BC aqui tem feito isso também – veja os exemplos do PIX e Open Banking. Agora, está trabalhando para democratizar o crédito – ainda tem muita gente não servida no Brasil, e entre esses muitos tem contas bancárias mas não são bancarizados de fato. Mas isso vai mudar. Vamos ter mais fintechs como o GuiaBolso, que permite juntar contas de vários bancos em um app de forma lúdica. O PIX vai fazer ruptura de preços e conexões, mas o Open Banking que é a grande revolução.
FINTECHS BRASIL – E o que o mundo das fintechs nos reserva, num futuro próximo?
JOÃO BEZERRA – Estou vendo muita coisa diferente prestes a acontecer. Vejo a possibilidade de ter fintechs em todas as empresas. Acho que o pagamento digital um dia tem que ser um direito universal, como é com dinheiro vivo; ninguém paga por uma transação com dinheiro, por que pagar quando é feita eletronicamente? Tudo o que é digitalizável é democratizável e desmonetizável, fica mais barato, sai da escassez para a abundância; foi o que aconteceu com o vinil, a fotografia, os filmes… Temos que nos reinventar. Mas defendo o capitalismo consciente, o que é diferente de ONG; acredito que o lucro pode trazer crescimento sustentável.
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