Imagem gerada por InnerAI
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O Banco Central (BC) começou, no início de novembro, a fase de testes de portabilidade de crédito sem garantia e sem consignação. O piloto conta com 29 instituições participantes, ainda em caráter restrito, no âmbito da estrutura do Open Finance Brasil, com orientação e acompanhamento do BC. Essa fase se estenderá até 2/2/2026, quando está previsto o lançamento para o público em geral. Na sequência, o BC vai discutir a portabilidade de crédito consignado para o servidor público federal, com expectativa de lançá-la em novembro de 2026. A entrada em vigor das demais modalidades deverá ocorrer na sequência, a partir da implementação das duas primeiras etapas. 

Ainda que a portabilidade de crédito seja possível atualmente, o procedimento para conseguir executá-la não é tão simples. Por isso, a inclusão dela no ambiente de Open Finance surge como alternativa para fomentar a competição e diminuir as taxas para o tomador de crédito.

A nova medida promete diminuir o tempo para a finalização das operações de portabilidade de crédito de cinco dias úteis para até três dias úteis. A experiência vai mudar para o consumidor, que poderá realizar a operação completamente pelo aplicativo do banco. A jornada será digital ao longo de todo o ciclo da migração.

No entanto, com fevereiro sendo a data-alvo para o início das operações de crédito pessoal clean (sem garantias), emerge o debate sobre a revisão do Ressarcimento de Custo de Originação (RCO).

De acordo com o BC, a discussão ainda não terminou. Guilherme Thémes, chefe de subunidade do Departamento de Regulação do Sistema Financeiro do BC, diz que os estudos e as consultas conduzidos pelo regulador e eventuais aprimoramentos normativos acerca do tema estão previstos para conclusão ao longo de 2026. Enquanto isso, associações do setor divergem quanto à necessidade de aplicação do RCO — leia mais abaixo.

Redução de custos e aumento da concorrência

A regulamentação da portabilidade de crédito data do ano de 2013, com a Resolução nº 4.292. E já nasce com objetivo de ampliar a concorrência no mercado financeiro e reduzir o custo do crédito.

Mas, antes mesmo da regulamentação, conforme explica Ana Carla Abrão, CEO da Associação Open Finance, era possível “mover” um empréstimo de uma instituição financeira para outra. Ocorria de forma analógica, sendo preciso fazer a solicitação pessoalmente nas agências. Na prática, o processo incluía a liquidação da dívida em um banco para obtenção de um novo crédito em outro. Devido à complexidade e ao desconhecimento por parte da população, esse tipo de transação não era muito realizada.

Ana Carla Abrão/Associação Open Finance
Ana Carla Abrão/Associação Open Finance | Imagem: divulgação

O estabelecimento do marco regulatório facilitou para o devedor trocar o crédito para uma instituição que oferecesse taxas ou condições melhores. Passou a não ser mais necessário efetuar a liquidação e entrou a figura da registradora. “Você continua tendo de ir ao banco, mas não mais liquida uma dívida para ter a outra. Faz-se a troca de dívida de uma instituição financeira para outra”, explica Ana Carla.

A integração da portabilidade ao Open Finance reforça a estratégia de permitir que os cidadãos tenham acesso a crédito com condições mais vantajosas, menor custo e maior transparência e autonomia na gestão do crédito. “Com Open Finance, esperamos simplificar o processo de portabilidade”, diz Thémes, do BC. A ideia, segundo ele, é tornar o serviço “totalmente digital, seguro e ágil, com menos barreiras e fricções em relação ao modelo atual.”

O porta-voz do regulador ressalta que a sinergia do processo de portabilidade de crédito com o compartilhamento de dados por Open Finance pode reduzir a assimetria de informações entre as instituições financeiras e os clientes. Isso deve resultar em uma potencial redução das taxas de juros.

O modelo atual de portabilidade de crédito continuará disponível e operando normalmente. “A portabilidade que existe com o intermediador vai seguir existindo. Mas via Open Finance se superam grandes dificuldades que existem hoje no mecanismo tradicional e que fizeram com que a portabilidade não fosse tão estimulada ou tão efetiva. A taxa de índice de insucesso dentro da portabilidade é muito alta no modelo tradicional”, explica Fernanda Laranja, vice-presidente da Zetta.

Na avaliação da entidade, que representa alguns dos maiores bancos digitais e fintechs do País, a portabilidade de crédito tende a facilitar a renegociação de dívidas. A expectativa é proporcionar a redução de juros e outras condições mais benéficas ao devedor. Conforme a Zetta, o processo atual de portabilidade se mostra burocrático, ineficiente e pouco acessível.

“Um ambiente competitivo tem melhores ofertas de produtos e menores taxas para o cliente. A gente sempre trabalha em prol da competição; e a portabilidade é um mecanismo fundamental colocar a competitividade para dentro do sistema financeiro e gerar tanto os melhores produtos, como, especificamente, o que a gente precisa em um País como o Brasil, que tem um dos maiores spreads do mundo, taxas menores de crédito para o consumidor”, frisa Fernanda. 

Nova (e melhor) experiência para o cliente 

A entrada da portabilidade via Open Finance torna a jornada mais simples e 100% eletrônica, realizada pelo próprio cliente por meio de dispositivos móveis. O acompanhamento do status do processo será em tempo real. “Espera-se que essa experiência seja mais simples e segura, ao utilizar as APIs padronizadas do Open Finance para compartilhamento de dados entre instituições”, assinala Thémes.

API é a sigla em inglês para Interface de Programação de Aplicação. Na prática, é um conjunto de regras e protocolos que permite que diferentes softwares e sistemas se comuniquem e interajam entre si.

O modelo em Open Finance permite que o devedor autorize o compartilhamento de seus dados cadastrais e transacionais da instituição “credora original” da operação de crédito com a instituição “proponente”. Assim, torna-se desnecessário ao cliente obter e fornecer todas as informações requeridas para iniciar o processo no ato da solicitação da portabilidade. Isso mitiga as chances de insucesso da operação, assim como aumenta a eficiência e a sinergia com os serviços disponíveis.

Guilherme Thémes/BC | Imagem: arquivo pessoal
Guilherme Thémes/BC | Imagem: arquivo pessoal

Sob o aspecto técnico, dentro do ambiente Open Finance, as instituições se comunicarão diretamente por meio de APIs padronizadas. Não há a necessidade de um intermediário para troca de dados, como ocorre atualmente no modelo tradicional.

“Dentro do aplicativo, o cliente vai ter no ambiente Open Finance um botão da portabilidade de crédito. Se você der consentimento e conectar as contas para as operações de créditos, pode receber notificação perguntando se quer portar a operação. A instituição tem de oferecer proposta que seja vantajosa para o cliente e precisa fazer a proposta nas mesmas condições vigentes para o cliente ter claro quanto vai economizar. Quando a pessoa diz: ‘OK, eu quero’, abre-se uma fase de contraproposta”, detalha Ana Carla, da Associação Open Finance.

Nessa etapa, a instituição credora original terá um prazo para decidir se vai ou não enviar uma contraproposta, melhorando o contrato original. O cliente terá acesso às propostas e poderá escolher entre elas se levará adiante a migração. Tudo online. Ana Carla detalha que as telas no aplicativo devem ser muito claras e autoexplicativas. Precisam mostrar a queda do valor da parcela, o quanto haverá de vai economia no fim do contrato e qual é a melhor proposta. 

“A portabilidade de crédito é uma iniciativa muito importante; talvez, a que mais aproxima o ecossistema do mundo de crédito. Toda a base de dados que já foi construída, hoje, é mais utilizada para fins de avaliação de risco de crédito, para os modelos de crédito. A portabilidade é uma experiência que vai mudar para o consumidor a percepção de como ele pode se beneficiar de uma forma muito mais direta de open finance”, opina.

Na mesma linha, Ivo Mósca, diretor de Inovação, Produtos, Serviços e Segurança da Federação Brasileira de Bancos (Febraban)​, ressalta que a portabilidade de crédito via Open Finance traz um novo canal. É, assim, uma nova oportunidade com experiência padronizada e digital.

“A portabilidade de crédito, hoje, já existe com mecanismos técnicos que foram desenvolvidos ao longo da última década com comunicação central e com controle de autorregulação. Agora, estamos partindo para um mundo totalmente digital, com dados precisos e um nível de padronização a esse compartilhamento com muita segurança. Porque você tem duas credenciais validando, a de quem vai receber e a de quem vai transmitir os dados. Então, isso garante que o cliente realmente está compartilhando as suas informações por sua vontade própria”, ressalta Mósca. 

Futuro do RCO

Uma das peças-chave em discussão no âmbito do arranjo da portabilidade via Open Finance é como fica o RCO. Trata-se do mecanismo pelo qual um valor é pago pelo banco que recebe o crédito portado pelo banco antigo quando um cliente transfere uma operação para outra instituição. O objetivo é compensar os custos que o banco de origem teve para conceder o crédito

Ivo Mósca/Febraban | Imagem: divulgação
Ivo Mósca/Febraban | Imagem: divulgação

Thémes, do BC, lembra que o RCO foi concebido como medida de compensação financeira exigível pela instituição originadora da operação de crédito quando da transferência do crédito contratado para uma outra instituição financeira.

“Transcorrido período de avanços tecnológicos e de inovações financeiras no setor, a discussão atual sobre o tema passa a ser em que medida, o RCO pode representar, ainda que de forma indireta, uma barreira à concorrência e à mobilidade do crédito”, afirma.

Nesse sentido, ele diz que o BC tem procurado avançar com pesquisas que abordem a questão tanto sob o aspecto de seus fundamentos normativos — buscando inspiração inclusive na experiência internacional — como também tem feito esforços no sentido de mapear e quantificar quais são os principais custos atualmente envolvidos na originação do crédito como um todo, além de qual seria o eventual efeito observável do RCO sobre as taxas de juros praticadas.

O BC ainda não definiu como ficará o RCO na portabilidade via Open Finance. Enquanto não sai a decisão, a Zetta defende que o RCO tal como está atualmente seja revisto ou, no mínimo, diminuído para os tipos de portabilidades por meio do ecossistema aberto que estão sendo contemplados nas etapas iniciais. “Idealmente, o RCO deve ser cancelado”, ressalta Fernanda, da Zetta. Ela justifica que, em um ambiente digital, os custos operacionais e a complexidade para os contratos não se equiparam aos que existiam antigamente. “A gente entende que o RCO desincentiva a portabilidade, porque acaba ficando caro”, acrescenta.

Um estudo encomendado pela Zetta com o propósito de examinar os potenciais efeitos do RCO sobre a dinâmica da portabilidade de crédito no Brasil sugere que a existência do mecanismo pode atuar como uma barreira que limita a efetividade. E também favorece os bancos estabelecidos, que podem reduzir taxas iniciais para reter clientes, enquanto bancos concorrentes repassariam o custo adicional para os tomadores de crédito. 

Fernanda Laranja/Zetta | Imagem: LinkedIn

“Ainda que se comprove que existe um custo atrelado à oferta do crédito — como a análise do score desse cliente ou o documental — a cobrança tem de ser dentro de uma padronagem ou de um valor que não exceda e não inviabilize o que é a portabilidade”, analisa Fernanda. Ela cita que há casos nos quais a taxa chega a 15%. Isso, na prática, acarreta um spread maior para o cliente e, portanto, desestimula a portabilidade.

Já a Febraban defende a cobrança do RCO da instituição que recebe a portabilidade como forma de ressarcir parte do custo da transação de crédito. “É um mecanismo importante para garantir, inclusive, a redução do custo e do spread para o cliente final. Porque, se, no dia seguinte ou dali a dois dias, uma outra instituição oferece taxa mais baixa é porque não teve esse custo. E o prejuízo fica para a instituição que originou a operação”, diz Mósca.

Indo além, ele assinala que, não havendo ressarcimento, o mercado pode se deparar com as instituições evitando originar o crédito, receosas de arcar com o investimento inicial e correr o risco de ter perdas com a migração do crédito para outra entidade que não teve desembolsos. Ainda no cenário sem RCO, o diretor da Febraban diz que, como a instituição credora que origina o crédito não sabe quem vai portar, a tendência é que ela democratize esse custo, subindo a taxa.

Pontos de atenção

O diretor da Febraban também chama a atenção para o fato de que, via Open Finance, a portabilidade nasce não mais de forma centralizada, e sim de uma relação bilateral entre cada uma das instituições. Assim é hoje o compartilhamento de dados. Dessa forma, o piloto deve ter como objetivo garantir que esta comunicação bilateral esteja funcionando corretamente. Tudo com a segurança adequada, os processos e as informações com a qualidade necessária para garantir a portabilidade.

Mósca destaca como um ponto de atenção a capacidade de observar o comportamento de forma centralizada. Ou seja, se os indicadores e a forma como que esta portabilidade está ocorrendo são transparentes por parte de quem está recebendo e da forma adequada e com um processo de retenção adequado por parte do credor original que está transferindo esta dívida.

“Sem esta informação central, você não consegue avaliar se há algum tipo de desvio de comportamento, como uma retenção indevida ou um pedido sem a transparência adequada por parte do cliente. Este é um desenho que a gente quer observar e entender, porque hoje a portabilidade é regida por uma autorregulação que foi evoluindo ao longo de dez anos para garantir que não haja desvios ou que sejam corretamente ajustados”, explica o diretor da Febraban.

Ele lembra que apenas participantes do Open Finance podem se beneficiar da modalidade. As demais instituições devem continuar operando com o canal de portabilidade atualmente vigente. “É importante que se tenha as mesmas regras regulatórias; a equivalência regulatória independentemente do canal e o controle da autorregulação para garantir a máxima eficiência e correto funcionamento do ecossistema.”

Por outro lado, Fernanda, da Zetta, pondera que, da maneira que a portabilidade é feita atualmente, o processo funciona apenas se todas as informações “estiverem perfeitas”. Se houver, por exemplo, alguma disparidade de dados, a migração pode ser negada. “Essa visibilidade de qual foi a negativa da portabilidade, geralmente não aparece para o cliente solicitante. Então, às vezes fica uma percepção de que foi o banco para o qual ele pediu a portabilidade que não efetuou a portabilidade, quando pode ter sido um erro que veio do originador. E é muito burocrático ainda; tem que assinar documentos”, justifica.

Ocorrendo dentro do Open Finance, esse tipo de entrave não deve existir, porque as informações já estão compartilhadas pelo cliente.  

A entidade dos bancos incumbentes defende, ainda, que haja equivalência regulatória independente do canal e controle da autorregulação. O objetivo é garantir a máxima eficiência e correto funcionamento do ecossistema. A autorregulação, atualmente, é secretariada pela Febraban e conta com outras instituições participantes. 

Para Zetta, a portabilidade via Open Finance abre a porta da competição de um segmento que, tradicionalmente, está na mão dos grandes bancos. “Dessa briga ganha o consumidor, porque, no fim, estamos falando de melhores taxas”, assinala Fernanda.

*Especial para o Finsiders Brasil