
As fintechs que operam como Instituições de Pagamento (IPs), autorizadas ou não, têm até o último útil de outubro para entregar à Receita Federal um conjunto de informações sobre movimentações financeiras no primeiro semestre de 2025. A regra consta de manual publicado na última semana pelo Fisco, como desdobramento da Instrução Normativa (IN) 2.278, editada em 29/8. A medida tem como objetivo apertar a fiscalização das fintechs, principalmente as não reguladas, algumas delas usadas pelo crime organizado para lavar dinheiro e cometer fraudes. A norma chegou a sair em janeiro deste ano, porém caiu após a onda de fake news em relação a um imposto sobre o Pix.
O envio das informações ocorre por meio da chamada e-Financeira, uma obrigação fiscal cumprida por grandes instituições financeiras e seguradoras desde 2015. Na prática, a declaração eletrônica inclui, por exemplo, saldos e transferências em conta corrente e de pagamento, rendimentos de aplicações financeiras, transações em moeda estrangeira, operações de previdência privada, entre outras. Assim, a Receita passa a ter um conjunto maior de informações para fazer cruzamento de dados e, com isso, rastrear melhor o “caminho do dinheiro”.
As instituições têm obrigação de enviar a e-Financeira quando o montante movimentado em cada mês, por tipo de operação financeira, for superior a R$ 2 mil, em transações de pessoas físicas. No caso de pessoas jurídicas, o valor mínimo é R$ 6 mil. A declaração se soma a outros reportes regulatórios exigidos periodicamente pelo Banco Central (BC) e por secretarias estaduais de Fazenda. Além disso, players regulados pelo BC são obrigados a informar transações suspeitas ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), seguindo as regras de cada tipo de instituição definidas pelo regulador.
Desafios
De acordo com especialistas ouvidos pelo Finsiders Brasil, o prazo apertado não é o único desafio para as fintechs. A nova obrigação exige um trabalho de coleta e organização dos dados, assim como a estruturação no layout exigido pela e-Financeira, que integra o Sped, plataforma que unifica a recepção, validação e armazenamento de documentos fiscais e contábeis de empresas no formato digital. Ou seja, há um padrão de envio das informações, que não é nada simples e demanda tecnologias e profissionais especializados.
“O principal desafio é estruturar essas informações internamente. Muitas vezes, a base cadastral não está completa e organizada”, analisa André Gibbon, CEO da Reg+, solução regulatória da Celcoin, empresa de infraestrutura financeira. No caso de fintechs que atendem empresas (PJs), também há a necessidade de se identificar o responsável legal por cada CNPJ, explica o especialista.
Para Daniela Froener, sócia do escritório Silva Lopes Advogados e especialista em Direito Tributário, o impacto para as instituições se dará conforme o seu nível de organização interna. “Vão sofrer mais as empresas com procedimentos internos muito fracos e que não investiram em setores administrativos e de compliance. Cerca de um mês e meio é pouco. São informações de um semestre inteiro, não é pouca coisa”, aponta ela.
Na avaliação de Diego Perez, presidente da Associação Brasileira de Fintechs (ABFintechs), o principal desafio para as IPs é criar novas rotinas capazes de acumular e organizar as informações exigidas, garantindo que esse processo seja feito de forma consistente dentro dos prazos. “Mais do que apenas reunir dados, é preciso adaptar os fluxos internos para que o envio à Receita se torne parte da rotina, sem riscos de descumprimento”, explica.
Dúvidas
Além do esforço de adequação num prazo curto, ainda há dúvidas sobre a nova norma da Receita. Uma delas diz respeito aos tipos de instituições obrigadas a entregar a e-Financeira. De acordo com a IN 2.278, IPs e participantes de arranjos de pagamento sujeitam-se agora às mesmas regras já aplicáveis às instituições que integram o Sistema Financeiro Nacional (SFN) e o Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB). A norma vale, inclusive, para as IPs não autorizadas ou em processo de autorização junto ao BC. Isso porque a IN excluiu a hipótese prevista no § 4º do art. 6º da Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013, conhecida como a “Lei das IPs“.
“A instrução foi curta e genérica. Abriu espaço para interpretações. Por exemplo: subcredenciadoras têm que enviar? Pela lógica, sim, mas não está escrito claramente”, observa Daniela. As subcredenciadoras (também conhecidas como subadquirentes) participam de arranjos de pagamento e operam “plugados” em credenciadoras, instituições reguladas pelo Banco Central (BC).
Outro perfil de instituição sobre o qual há dúvidas em relação à exigência da e-Financeira é o Iniciador de Transação de Pagamento (ITP), explica a advogada. O ITP é uma das modalidades de IP e foi criado no âmbito do Open Finance. Esse tipo de player inicia transações de pagamento, mas não gerencia as contas, como acontece no caso dos emissores de moeda eletrônica, por exemplo. “ITP não detém, nem gerencia contas, mas é uma IP. Precisará enviar [a e-Financeira]?”, questiona Daniela.
Nesses casos, a Receita parece ter dado uma “pista”, segundo os especialistas. No novo layout da e-Financeira, o Fisco incluiu um campo “sem movimento”, o que permitirá o cumprimento da obrigação regulatória mesmo se a instituição não tiver dados transacionais para reportar no período. “É como uma declaração de isenta de Imposto de Renda (IR)”, compara André, da Reg+. Segundo os especialistas, para as instituições sem movimentação, o prazo de envio das informações é maior: fevereiro de 2026, com a declaração dos dados do segundo semestre de 2025.
Mais uma dúvida é se haverá algum tipo de multa ou penalidade para as novas instituições obrigadas, caso não entreguem a e-Financeira ou descumpram os prazos. Hoje, explica André, já existe uma multa por atraso ou não envio da declaração. “O próprio sistema já prevê o auto de infração, é automático. Mas não sabemos se a Receita será benevolente com essa turma nova, talvez dando um ‘cartão amarelo’ antes de multar”, diz.
O Finsiders Brasil enviou algumas perguntas à Receita e aguarda retorno.
‘Selo de qualidade’
Apesar dos desafios e incertezas, a nova regra que “enquadra” as fintechs vem sendo elogiada pelo mercado. A medida é bem-vinda e ajuda a separar o “joio do trigo” num momento crítico para o setor. Para especialistas, a inclusão das fintechs na e-Financeira aumenta a transparência e fortalece o mercado de pagamentos. Ao mesmo tempo, amplia a base de dados da Receita no combate ao crime organizado. “O mercado aceitou bem. As fintechs enxergam que enviar a e-Financeira coloca um ‘selo de qualidade’, mostrando que não estão abaixo dos bancos e são cobradas quase igual”, diz Daniela.
Para Diego, da ABFintechs, a inclusão das fintechs na norma é importante, e não deve ser encarada como a criação de uma nova exigência, “mas como uma adaptação à realidade do mercado, eliminando assimetrias que sempre foram apontadas como sinal de que as fintechs tinham um tratamento diferenciado em relação aos grandes bancos.”
Na visão de Letícia Moschioni, sócia-fundadora da Finscale, plataforma de consultoria e mentoria estratégica com foco em fintechs, não basta apenas cumprir regras. “É preciso repensar a gestão de dados, investir em tecnologia e adotar boas práticas de governança”, afirma. De acordo com ela, quem se antecipar a esse movimento poderá transformar um desafio regulatório em oportunidade de fortalecimento e crescimento. “Organizações que adotarem rapidamente práticas robustas de compliance e integrarem tecnologia a seus processos conquistarão mais credibilidade junto a clientes e investidores.”
Diego, da ABFintechs, ressalta que essa medida atende a um pleito antigo das próprias fintechs. As empresas do setor já buscavam essa modernização justamente para não serem vistas como instituições frágeis em termos de controles e suscetíveis a fraudes. “Agora, elas passam a integrar a cadeia de entidades estratégicas e relevantes para o combate ao crime organizado e à lavagem de dinheiro”, destaca.
Soluções
Mas ele observa que o processo de adaptação das fintechs à nova norma tem acontecido de forma simples. Afinal, existem no mercado soluções tecnológicas para coleta, manuseio e compilação das informações no formato exigido, além de garantir a conectividade com a e-Financeira. “Ou seja, não há necessidade de desenvolver tecnologia proprietária nem de mobilizar times de desenvolvimento. É verdade que há um custo de implantação, mas ele não é alto”, diz. Segundo ele, existem diferentes opções de soluções, o que torna os valores acessíveis e competitivos.
Diante do tempo curto, a procura está alta, de acordo com os especialistas. A Reg+, por exemplo, já vinha se preparando para essa demanda desde o final de 2024, quando saiu a primeira IN da Receita, revogada após as falsas notícias sobre um imposto do Pix. “Naquela época, muitas instituições nos procuraram, e não só IPs, mas também as Sociedades de Crédito Direto/SCDs [um tipo de fintech de crédito] e as fintechs com licenças de financeiras”, conta André.
Neste momento, ele diz que a demanda está “altíssima” e inclui diferentes perfis de instituições. “Vai ter uma corrida aos 45 do segundo tempo para tentar ficar compliance. Mas a orientação que dou para as fintechs é não deixar para a última hora. Não é ‘copiar e colar’ as informações. O esforço é maior: ir nas bases transacionais, na ‘cozinha’ e pegar os dados para poder mandar para a e-Financeira.”