Cobrar ou não cobrar juros no cartão, eis a questão: "guerra de narrativas" entre bancos e fintechs vai esquentar nos próximos dias

Com a aprovação do Projeto de Lei 2685/2022 (que além do programa de renegociação de dívidas Desenrola Brasil também impõe limite à cobrança de juros no cartão de crédito), a “guerra das narrativas” entre bancos e fintechs vai esquentar nos próximos 90 dias.

De um lado, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) culpa o parcelado sem juros (PSJ) pelas altas taxas cobradas no rotativo; de outro, adquirentes (as donas de maquininhas de cartão) e fintechs especializadas em adiantamento de recebíveis de vendas parceladas em cartão tentam desvincular uma coisa da outra.

O prazo de 90 dias foi estabelecido pelo PL para que o setor financeiro encontre um consenso em relação aos juros do crédito rotativo dos cartões – se não houver esse consenso, ou se houver mas o Conselho Monetário Nacional (CMN) não aprová-lo, o custo do rotativo fica limitado a 100%.

O PL incluiu o teto para o rotativo e a portabilidade do saldo devedor em cartões. No entanto, não trata do fim do parcelamento a “perder de vista” de compras sem juros, modalidade apontada pelos bancos como responsável pelas altas taxas, que superam 400% ao ano. Já os bancos defendem o fim do PSJ, ainda que de forma gradual.

Importante lembrar que, na prática, o rotativo hoje no Brasil só vale por 30 dias – depois disso, se o cliente não paga, cai no parcelamento com juros.

Tema sensível

“A negociação ficou ainda mais complicada com a entrada do Poder Legislativo no jogo. Este é um tema sensível, que merece a mediação de um juiz isento, o Banco Central”, diz Boanerges Ramos Freire, presidente da consultoria Boanerges & Cia. Até porque, teto de juros não vai funcionar – nem a lei que limitava os juros em 12% ao ano prevista Constituição de 1988 pegou.

“Depois de incendiar o debate em agosto, quando seu presidente Roberto Campos Neto declarou ao Senado que podia acabar com o rotativo, o BC agora está costurando uma solução nos bastidores”, diz uma fonte que preferiu não se identificar.

Segundo Campos Neto disse na época, o BC estudava criar algum tipo de tarifa para desincentivar a compra desenfreada no crédito em uma quantidade muito grande de parcelas – o que, com frequência, levaria o comprador a perder o controle da própria fatura. “Não é proibir o parcelamento sem juros. É simplesmente tentar que fique um pouco mais disciplinado. Não vai afetar o consumo. O cartão de crédito é 40% do consumo no Brasil”, explicou Campos Neto.

Mas, enquanto o BC criticava o aumento das parcelas sem juros para mais de 13, um estudo da consultoria especializada em varejo Gmattos mostra o oposto – ao menos, no comércio eletrônico: “O número de parcelas tem caído: na média geral, está em 7,5 vezes. Em julho do ano passado, era de 8,1; há cerca de 20 anos, o parcelamento sem juros usualmente atingia 12 vezes”.

Gastão Mattos acredita que o lojista está interessado em diminuir o parcelamento sem juros, e não em acabar com ele. “Uma alternativa seria criar um incentivo, como preços reduzidos, para pagar à vista no cartão de crédito. A loja pode dar um desconto para esse tipo de pagamento.”

Rotativo bom x ruim

Para Freire, da Boanerges & Cia, o ideal seria chegar a um equilíbrio – mesmo que considere o prazo de 90 dias “apertado”. Uma das possibilidades seria, por exemplo, separar o rotativo “bom” do “ruim”. “Hoje, o conceito de rotativo no Brasil é ruim, custa 15% ao mês e inclui todos os atrasados: do parcelamento sem juros, do pagamento mínimo, da renegociação com juros”.

Túlio Oliveira, vice-presidente sênior do Mercado Pago no Brasil, também defende uma solução intermediária. “A gente acredita muito que o comércio tem que ter a liberdade de escolher em quantas parcelas quer vender, o PSJ já é cultural no Brasil, e mexer nisso seria muito ruim”.

Oliveira lembra que a conversa começou com a possibilidade instituir um teto para taxas do rotativo, depois entrou a discussão para o fim do PSJ, empurrada pelos bancos. “Somos contra acabar com o PSJ, acreditamos que é um grande instrumento de financiamento para o lojista e para o consumo”, diz, lembrando que a taxa média de antecipação é de 1,4% ao mês, enquanto a taxa do rotativo é de 15%.

“Não é o PSJ o problema, mas a taxa alta do rotativo e a concessão descontrolada dos bancos nos últimos anos. A inadimplência está no risco de crédito assumido e não no PSJ, que não tem nada a ver com isso”.

O VP do MP afirma que uma articulação entre BC, associações e Ministério da Fazenda vai encontrar um caminho que atenda os anseios de todos, sem gerar impactos no PSJ. “Uma das propostas foi incorporada no PL: a portabilidade de crédito. Isso aumentaria competição e ajudaria a baixar os juros. O Open Finance está aí para permitir que dados do cartão sejam compartilhados”.

“Parcelar sem juros no cartão é um viabilizador de acesso com menor impacto no endividamento prejudicial”, diz Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva. “A grande maioria dos brasileiros (78%) diminuiriam o consumo se o parcelamento deixasse de existir”.

Guerra de narrativas

Febraban, ABBC, Zetta, associações de lojistas e de consumidores e tantos outros envolvidos vêm marcando posição divulgando seus argumentos desde que a polêmica se instaurou.

Segundo pesquisa da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), quase 90% do varejo brasileiro tem suas vendas parceladas sem juros no cartão de crédito. A pesquisa foi realizada junto a 6 mil empresas de todos os segmentos e portes do varejo nas 26 capitais e no Distrito Federal. Mais de 1 milhão de estabelecimentos do varejo, o que representa 47,1% do setor, tem até metade das vendas faturadas dessa forma, volume correspondente a quase R$ 1,5 trilhão.

Para 29,3% dos varejistas, as vendas no parcelado sem juros representam entre 50% e 80% do faturamento, o que chega a R$ 929 bilhões por ano. E para outros 13,2%, a fatia de vendas parceladas é superior a 80%, o que representa R$ 418 bilhões anuais. Aproximadamente 10% não souberam responder.

“A pesquisa mostra a relevância do parcelamento nas vendas do comércio e a consolidação do cartão de crédito como um condicionante do consumo nos últimos anos”, afirma o presidente da CNC, José Roberto Tadros. “Para a CNC, é necessário encontrar uma solução para racionalizar as taxas de juros exorbitantes, que chegam a impressionantes 440% ao ano, seguindo o modelo implementado no cheque especial no início de 2020”, reforça o presidente da Confederação.

“Jabuticaba”

A Febraban publicou estudo elencando que a eliminação do parcelamento sem juros no cartão de crédito, definido pela entidade como “uma jabuticaba brasileira”, poderia reduzir pela metade o custo com o pagamento de juros nominais no País, dos atuais 12,42% ao mês, para os níveis praticados em outros países da América Latina, de cerca de 6,6% a.m. Para a entidade, as única beneficiadas dessa “jabuticaba” são as maquininhas independentes, “que se apropriam das receitas de juros, não correm qualquer risco de crédito, não alocam capital e induzem endividamentos que se eternizam”.

O setor bancário se manterá firme em três linhas de atuação: diluição do risco entre os elos da cadeia, hoje concentrado nos bancos emissores que suportam todo o peso da alta inadimplência; manutenção do cartão de crédito como relevante instrumento para o consumo; e reequilíbrio da grande distorção que só o Brasil tem, com 75% das compras feitas com parcelado sem juros.

Isaac Sidney, presidente da Febraban

Mas, segundo dados de associados da Abranet (Associação Brasileira de Internet), que representa parte das empresas de pagamento digital, clientes que compram parcelado têm inadimplência menor que os clientes que só compram à vista.

Já a Associação Brasileira de Bancos Comerciais (ABBC) divulgou recentemente um manifesto no qual três pontos referiam-se a essa polêmica:

  • Rejeição ao teto de juros: Somos contra a definição de um teto de juros, direta ou indiretamente, seja por lei ou autorregulação.
  • Portabilidade da dívida do cartão de crédito: Estamos a favor da criação de regras e ferramentas para que os consumidores possam transferir livremente suas dívidas do cartão de crédito, visando obter melhores condições em outras instituições.
  • Parcelamento da fatura do cartão de crédito: Apoiamos o desenvolvimento de novos mecanismos que permitam a renegociação e o parcelamento de faturas atrasadas em termos mais vantajosos para os consumidores endividados no crédito rotativo.

Na semana passada, durante o Fintouch, evento anual da ABFintechs, a Zetta apresentou uma pauta com sete pontos que defende para aumentar a competição e baixar os juros no mercado financeiro. Um deles diz respeito à portabilidade, inclusive de saldo de cartões. Segundo pesquisa realizada pela Zetta, se fosse tão simples quanto um Pix, 70% dos clientes usariam a portabilidade – não só de salário, mas também de crédito.”