DEBATE

Ser ou não ser (o operador do Pix), eis a questão do momento para o Banco Central

Tema dominou os debates em boa parte do evento realizado pelo Centro de Estudos de Direito Bancário (CDB), da Faculdade de Direito da USP, na segunda-feira (25/8)

Da esq. para a dir.: Pedro Ferraz/CDB; Renato Gomes/BC; Lucas Caminha/Ebury;Ana Abrão/Open Finance; e Ruy Camilo/USP | Imagem: Léa De Luca
Da esq. para a dir.: Pedro Ferraz/CDB; Renato Gomes/BC; Lucas Caminha/Ebury;Ana Abrão/Open Finance; e Ruy Camilo/USP | Imagem: Léa De Luca

Em meio à escalada de fraudes e ciberataques envolvendo o Pix, à carência de orçamento e de pessoal no Banco Central (BC) para apertar o cerco e, ainda, às recentes investidas do governo norte-americano contra o arranjo brasileiro de pagamentos instantâneos, o papel do BC como operador do sistema voltou a ser questionado.

O tema dominou os debates em boa parte de um evento do Centro de Estudos de Direito Bancário (CDB), da Faculdade de Direito da USP, na segunda-feira (25/8). “Isso foi tentado”, disse Renato Gomes, diretor de Organização do Sistema Financeiro e de Resolução do BC, em relação a deixar a operação do novo sistema de pagamentos com os entes privados. Mas não andou. “Quando o mercado é chamado a organizar a competição, ele faz de uma maneira que haja uma situação de renda a ser extraída.”

O “backbone público” nas mãos do Estado, disse, abriu espaço para um ecossistema mais eficiente. As contas bancárias ativas dobraram; cheques caíram de 27% das transações não em dinheiro em 2005 para 0,16% atualmente. Cartões saltaram de 5,2 bilhões de operações em 2009 para 48,7 bilhões em 2014 — e seguiram crescendo após o Pix, contrariando o temor de canibalização. Do cheque e da TED à liquidação instantânea, a tese de Gomes foi a de que a infraestrutura pública produzida pelo BC destravou a competição na ponta.

Essa infraestrutura sustentou a evolução funcional do arranjo. No Pix Automático, por exemplo, a trava dos contratos bilaterais do velho débito automático cai. “Não há a menor diferença entre o grande e o pequeno”, disse Gomes, ao defender que qualquer empresa possa oferecer cobrança recorrente sem negociar banco a banco. Na mesma trilha, o Pix Parcelado apareceu como frente da agenda evolutiva. Um desenho que, para o BC, reduz atritos, expande inclusão e dá cadência de cidadania digital ao sistema de pagamentos.

Google, o maior ITP do Brasil

O advogado e economista Lucas Caminha, diretor jurídico da Ebury Bank, acredita que o duplo papel regulador‑operador teria respondido a uma falha de coordenação. Além disso, custos tecnológicos altos, incentivos para não interoperar, medo de canibalizar receitas (como a própria TED e a antecipação do cartão) e o risco de ninguém embarcar antes de o sistema atingir massa crítica. O lançamento, disse, se assentou em quatro pilares — participação mandatória dos maiores, gratuidade para pessoa física, APIs abertas e governança mista no Fórum Pix. API é a sigla em inglês para Interface de Programação de Aplicação.

Os resultados vieram sem coerção na ponta. “Ninguém obriga o brasileiro a usar Pix”, afirmou Lucas. São 160 milhões de pessoas físicas (mais de 90% da população adulta) e 19 milhões de pessoas jurídicas no sistema. Para o lojista, o recebimento médio custa 0,3%, ante 1,13% no débito e 2,34% no crédito, com antecipação a custo zero. Estimativas do BC falam em ganho de eficiência de 2,08% do PIB (2016). Na esfera internacional, rebateu a tese de “tratamento discriminatório”: “O maior iniciador de transações no Pix [ITP] hoje é o Google.”

“Custa muito dinheiro”

As críticas apareceram. Voltaram o crowding out da iniciativa privada, a cobrança pela neutralidade tecnológica, os alertas de governança e o desconforto com o volume de dados nas mãos do regulador. “Crowding out” é o fenômeno econômico onde o aumento da despesa pública ou do investimento governamental leva a uma redução do investimento privado.

Para quem é a favor do BC seguir operando, há concorrentes possíveis ao Pix. E o que se exige são “ajustes incrementais, não estruturais” — com prioridade para cibersegurança e para a gestão transparente da agenda evolutiva.

Se a operação centralizada do Pix parece ter resolvido a coordenação, ela não é barata. Gustavo Loyola, ex‑presidente do BC, chamou o arranjo de “bem público” e puxou o freio de mão no custo. “Em um mundo cheio de [ciber]ataques, preservar esse ambiente seguro custa dinheiro, custa muito dinheiro.” Defendeu autonomia financeira para a autarquia porque, sem blindagem orçamentária, projetos estratégicos “sofrem com falta de orçamento”. Ou seja: há um preço alto e recorrente para manter de pé a infraestrutura crítica.

A advogada Fernanda Garibaldi, diretora-executiva da Zetta, associação que reúne algumas das maiores fintechs brasileiras, deslocou a discussão para o terreno jurídico e institucional. Segundo ela, embora a lei de autonomia não traga “mandato explícito” para inovar, a Lei 12.865, de 2013 — ao tratar de arranjos e Instituições de Pagamento (IPs) — positivou “competição, inclusão e inovação” como princípios que legitimam a atuação do BC nos meios de pagamento. “[O Pix] é um sucesso”, disse. De acordo com ela, a Constituição autoriza o regulador a ser um dos “arquitetos da inovação”, promovendo interoperabilidade aberta onde o mercado, por si, emperra.

Sucesso

Já Eduardo Salomão, sócio do Levy e Salomão Advogados, posicionou o Pix na camada de infraestrutura de mercado, ao lado de registradoras e do projeto Drex. Esse último, por sua vez, deve usar tecnologia de registros distribuídos para circular direitos e evitar desintermediação bancária “muito traumática” em momentos de estresse. O aviso de Salomão foi duplo: a arquitetura do Sistema Financeiro Nacional (SFN) — do BC às normas prudenciais — recomenda cautela com importações normativas apressadas. Mas reforça que infraestrutura pública bem desenhada é antídoto contra fragilidades sistêmicas.

Ana Carla Abrão, diretora-presidente da Associação Open Finance, conectou o Open ao Pix. Ela defendeu uma governança representativa para “evitar que interesses específicos de um segmento do mercado prevaleçam”. E exibiu a escala da abertura de dados: “mais de 60 milhões” de usuários, “3 a 4 bilhões de chamadas por semana” e “quase 800 instituições participantes”. Com casos de uso que reduzem inadimplência e tempo de recebimento quando Pix Automático roda via Open Finance — uma conexão que permite à empresa se ligar a vários bancos de uma vez.

Apesar de crucial para implantar um ecossistema mais ágil na largada, o que o mercado defende agora é que haja disciplina; orçamento e gente para sustentar segurança, neutralidade tecnológica e governança representativa; interoperabilidade com o Open Finance para que funções como o Pix Automático reduzam a inadimplência e acelerem recebíveis; e transparência na priorização da agenda evolutiva.