Inteligência artificial - Imagem: Adobe Stock
Inteligência artificial | Imagem: Adobe Stock

Quando falamos em pagamentos agênticos (agentic payments), estamos nos referindo a uma evolução natural dos meios digitais de pagamento. Até aqui, avançamos do cartão físico — em que o próprio usuário digita a senha — para os pagamentos com um clique, popularizados pela Amazon e pelo PayPal, e depois para os pagamentos invisíveis de serviços como Uber e iFood, em que não há interação no momento final da compra. O próximo passo é o “nenhum clique necessário”.

Ou seja: o consumidor não precisa entrar no aplicativo nem confirmar nada. Um agente de Inteligência Artificial (IA) toma a decisão de comprar e paga em seu nome, com base em preferências, limites e intenções previamente configuradas. Imagine alguém que programa o agente para manter cápsulas de café sempre em casa. Quando o estoque está acabando, a IA identifica a necessidade, escolhe a melhor oferta disponível e faz a compra automaticamente, pagando com segurança. Esse é o pagamento agêntico: a combinação de intenção humana, decisão autônoma da IA e execução automática no trilho de pagamentos.

Esse movimento não me surpreende. Acompanho os meios de pagamento há mais de 25 anos e sempre defendi que o check-out deveria desaparecer. Pagamentos existem para resolver uma necessidade, não para ser um obstáculo.

Estratégias

Isso não é apenas teoria. As maiores empresas do setor já anunciaram suas estratégias. A Mastercard lançou o Agent Pay, uma solução que permite a agentes de IA efetuarem compras em nome do usuário com tokenização avançada e mecanismos para verificar a confiabilidade de cada agente. A ideia é que tanto consumidores quanto empresas possam delegar compras e pagamentos sem risco de fraude. No mundo corporativo, por exemplo, uma pequena empresa poderá usar um agente para buscar fornecedores, negociar prazos e pagar com um cartão corporativo virtual, sem planilhas, e-mails ou formulários.

A Visa, por sua vez, lançou o Intelligent Commerce, que dá ao consumidor a possibilidade de configurar preferências e limites, enquanto o agente cuida do resto. A empresa anunciou ainda a integração com stablecoins, moedas digitais estáveis vinculadas ao dólar ou ao real, por meio da parceria com a Bridge, controlada pela Stripe, permitindo a emissão de cartões Visa lastreados nesses ativos.

Já o PayPal apresentou sua própria visão ao abrir ferramentas para que desenvolvedores criem experiências em que agentes emitem faturas, acompanham pagamentos, enviam lembretes e realizam cobranças. A proposta é que os agentes possam integrar toda a rotina financeira dentro da própria infraestrutura da empresa.

O Google, por sua vez, trouxe ao mercado o AP2 (Agent Payments Protocol), um protocolo aberto que define uma linguagem comum para transações feitas por agentes. Assim como o protocolo HTTP permitiu a interoperabilidade da web, o AP2 tem como objetivo garantir que agentes e comerciantes “falem a mesma língua” nos pagamentos.

Já a parceria entre OpenAI e Stripe resultou no Agentic Commerce Protocol, que permite realizar compras diretamente dentro do ChatGPT. O usuário conversa com o assistente, escolhe um produto e o pagamento ocorre automaticamente. Hoje já é possível comprar no Etsy, e outras plataformas, como Shopify, devem ser integradas em breve.

Esse movimento levanta, naturalmente, alguns desafios. A primeira questão é a responsabilidade legal: se o agente compra errado, quem responde? O usuário, o banco, a empresa de IA ou a bandeira de cartão?

Outra dúvida é sobre identidade e autenticação: em um pagamento tradicional, a validação pode ser biometria, senha ou token. Mas quando o agente compra sem ação direta do consumidor, como provar que foi o próprio usuário quem autorizou aquela transação?

Há ainda a questão da governança: os agentes precisarão ser verificados, certificados e auditados para se tornarem agentes de confiança. Mastercard, por exemplo, já fala em trusted agents, registrados e aprovados antes de serem liberados para pagar.

E no campo regulatório, órgãos como a FTC nos Estados Unidos e a União Europeia, com a DMA (Digital Markets Act), a DSA (Digital Services Act) e o AI Act, estão atentos a práticas como autopreferência de plataformas e sistemas de recomendação manipulativos, classificando certas condutas de IA como risco inaceitável.

Manipulação da oferta

Mas há um desafio ainda menos discutido, talvez o mais delicado de todos: a manipulação da oferta. Quando pesquisamos no Google, os primeiros resultados são quase sempre anúncios pagos. Empresas disputam esse espaço para aparecer no topo das buscas. O que acontece quando a lógica passa a ser aplicada a um agente de IA que não apenas sugere, mas decide e paga?

Se você pede ao agente para comprar passagens aéreas para Lisboa, ele pode mostrar três opções. Mas como ter certeza de que essas opções são realmente as melhores? E se estiver priorizando uma companhia aérea apenas porque ela pagou para estar ali? O risco é enorme, porque o agente não está apenas influenciando a decisão — ele está executando a compra.

Edson Santos/Colink
Edson Santos/Colink | Imagem: divulgação

Existem várias formas de manipulação possíveis. O agente pode privilegiar produtos da própria plataforma a que pertence, prática conhecida como autopreferência. Pode exibir ofertas patrocinadas sem identificar claramente que são pagas. E pode ser alvo de ataques algorítmicos, como os chamados shilling attacks, em que perfis falsos, avaliações e cliques manipulam recomendações para empurrar certos produtos ao topo. Esse problema já foi documentado em estudos sobre sistemas de recomendação e ganha proporções ainda mais graves quando conectado a transações financeiras.

Novo paradigma

O ponto é que estamos diante de um novo paradigma. A manipulação da oferta não é apenas um detalhe técnico, mas uma questão com implicações econômicas significativas. E se não houver regras claras, transparência e confiança, o risco é que a conveniência se torne um atalho para gastos manipulados.

Apesar desses desafios, o saldo é otimista. A história dos pagamentos mostra que cada inovação trouxe riscos, que foram gradualmente superados com tecnologia, regulação e adaptação. O Pix, por exemplo, enfrentou preocupações com fraude e segurança, mas rapidamente conquistou confiança e transformou o mercado. Isso vale para os pagamentos invisíveis de aplicativos de transporte, que pareciam arriscados no início e hoje são parte da rotina.

Como profissional que há décadas acompanha esse setor, vejo nos pagamentos agênticos a mesma trajetória. Eles eliminam o check-out, devolvem tempo ao consumidor e integram o ato de pagar à própria experiência de consumo. Se o objetivo é “matar o check-out”, estamos mais perto dele do que nunca.

Em breve, será normal acordar e descobrir que o café já foi encomendado, a conta da academia já foi paga e as finanças da casa estão em ordem — tudo sem que você tenha precisado pedir. A única pergunta que resta é se essas decisões estarão sempre sendo tomadas a seu favor ou a favor de quem tenta manipular o seu agente. É nesse ponto que a regulação, a tecnologia e a transparência terão que caminhar juntas.

Mas, no balanço final, o que temos é uma promessa poderosa: pagamentos sem fricção, integrados à vida, que deixam de ser invisíveis para se tornarem inteligentes. O pagamento deixa de ser ato, deixa de ser atrito — e passa a ser inteligência. E esse é um futuro pelo qual vale a pena torcer.

E no Brasil?

No Brasil, ainda não há iniciativas públicas conhecidas voltadas à criação de agentes de IA capazes de realizar pagamentos de forma autônoma. O tema é recente e, por enquanto, aparece mais como tendência do que como realidade. Alguns estudos conduzidos por consultorias internacionais, como a Capco, já destacam o potencial do uso de Inteligência Artificial para automatizar decisões financeiras entre empresas — especialmente em processos de gestão de caixa, priorização de pagamentos e otimização de liquidez. São movimentos que se aproximam conceitualmente dos pagamentos agênticos, ainda que de forma embrionária.

No varejo e nos serviços ao consumidor, também surgem experiências pontuais de uso de IA para facilitar a execução de pagamentos. Há, por exemplo, testes de soluções que permitem ao usuário autorizar transferências via Pix por meio de comandos de voz ou mensagens de áudio em plataformas como o WhatsApp. São iniciativas que tornam o pagamento mais natural e contextual, mas que ainda dependem de ação direta do usuário — ou seja, não se configuram como verdadeiros agentic payments.

Isso não significa, porém, que o Brasil ficará de fora desse movimento. Pelo contrário. A maturidade tecnológica do sistema financeiro brasileiro, a ampla adoção do Pix e o ambiente regulatório já estruturado criam condições favoráveis para a chegada dessas inovações. Minha avaliação é que, à medida que as iniciativas das grandes empresas globais mencionadas neste artigo avancem, elas inevitavelmente chegarão ao mercado brasileiro e se disseminarão rapidamente — assim como aconteceu com outras transformações digitais no setor de pagamentos.

*Conselheiro, consultor, advisor e investidor-anjo, e sócio-fundador na Colink