DESAFIOS

'Crédito do Trabalhador' enfrenta entraves para deslanchar

Taxas resistem a cair devido a problemas técnicos de escrituração, riscos de crédito difíceis de mensurar e até manobras no mercado para driblar limites legais, segundo especialistas

Painel sobre os desafios do novo consignado privado | Imagem: print de tela
Painel sobre os desafios do novo consignado privado | Imagem: print de tela

Lançado em março como uma promessa de inclusão financeira para milhões de trabalhadores brasileiros da iniciativa privada, o novo consignado privado — conhecido também como “Crédito do Trabalhador” — ainda não deslanchou. Apesar do rápido crescimento inicial, a modalidade enfrenta taxas que resistem a cair, problemas técnicos de escrituração, riscos de crédito difíceis de mensurar em pequenas empresas e até manobras no mercado para driblar limites legais – conhecida como “margem consignável do salário”.

A opinião é de representantes do Banco Central (BC), do Senado, da Associação Brasileira de Bancos (ABBC), Zetta, do Nubank, Banco do Brasil (BB) e do Judiciário, reunidos na quinta-feira (18/9) no “II Seminário Nacional sobre Crédito Consignado“. Para eles, questões como a avaliação de risco de pequenas empresas, a prevenção de fraudes, a clareza das informações ao consumidor e a criação de uma rede de proteção regulatória seguem como pontos de tensão. Ou seja: o “Crédito do Trabalhador” pode se consolidar como ferramenta de inclusão, mas só avançará de forma sustentável se combinar eficiência tecnológica, regulação eficaz e responsabilidade social.

“Talvez um dos elementos mais sensíveis seja a escrituração”, opinou o secretário de Proteção ao Trabalhador do Ministério do Trabalho e Emprego, Carlos Augusto Simões. Segundo ele, 15% das operações ainda não são escrituradas, e isso se deve em grande medida ao perfil das empresas participantes: “96% das cerca de 414 mil empresas que refletem a base de contratação têm, no máximo, dez funcionários. Boa parte delas não tem memória ou expertise nesse tipo de processo”. E tem mais. No modelo anterior, que dependia de convênios, os bancos acabavam fechando contrato apenas com grandes empresas que já eram suas clientes.

Oferta e riscos

Além da fragilidade operacional, há o desafio de precificar o risco. “Mesmo entre empresas de porte similar, encontramos grande dispersão de taxas de juros”, observou Carlos Augusto. O problema decorre da dificuldade em avaliar setores com alta rotatividade ou vínculos frágeis de emprego.

O ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Douglas Alencar Rodrigues, elogiou a iniciativa como política pública inclusiva, mas alertou para distorções. “Estamos assistindo ao nascimento de um assédio comercial, empregados sendo procurados de forma expressiva para celebrar contratos, mesmo quando não apresentam necessidade de crédito”, disse. Segundo ele, há casos em que o limite legal de 35% da renda é superado por meio de artifícios usando outros produtos.

Douglas também chamou a atenção para problemas jurídicos na rescisão de contratos. Pela CLT, o desconto em verbas rescisórias não pode ultrapassar o valor de uma remuneração, o que pode inviabilizar a quitação integral da dívida. “A insegurança jurídica acaba sendo um fator de precificação do produto”, afirmou.

Do lado do regulador, o procurador-geral adjunto do BC, Lucas Freire, destacou que o desafio é equilibrar eficiência e estabilidade. “Uma expansão desordenada, sem padrões prudenciais adequados, costuma gerar crises muito custosas para toda a sociedade”, lembrou. Ele citou normas como a Resolução 4.557, que exige estruturas de governança e gestão de risco compatíveis com o porte de cada instituição, e a Resolução 5.004, que obriga a entrega de um documento descritivo de crédito ao tomador.

Para Lucas, a regulação já oferece instrumentos robustos, mas o cumprimento efetivo pelas instituições é fundamental: “O papel do Banco Central é prover esse ambiente. O papel do mercado é cumprir as regras com responsabilidade. E o papel do Judiciário é garantir que boas práticas sejam reconhecidas e más práticas desestimuladas”.

Linha de frente

A diretora jurídica do BB, Lucinéia Poçar, afirmou que o “Crédito do Trabalhador” é um marco para o sistema financeiro. “É inevitável que seja levado à prova em diversos ambientes, sobretudo no Judiciário”, disse. Ela destacou que a lei trouxe um regime robusto de governança, com escrituração obrigatória e responsabilização direta de empregadores em caso de falhas no repasse.

Segundo Lucinéia, o BB já desembolsou mais de R$ 8,5 bilhões em menos de seis meses, atendendo 700 mil trabalhadores em 5,3 mil municípios. “Nossa taxa média de juros está em 2,96% ao mês, inferior a outras modalidades de crédito pessoal”, afirmou.

Do lado das fintechs, a diretora executiva da Zetta, Fernanda Garibaldi, classificou o momento como histórico. “Estamos ampliando uma política pública de 2003, agora com uma plataforma digital centralizada, integrando CTPS Digital e e-Social”, disse. Ela apontou, no entanto, para desafios como portabilidade, proteção de dados e responsabilidade dos empregadores.

Fernanda reforçou a importância da educação financeira: “Não podemos pensar só em investimento. O trabalhador precisa entender quanto compromete da renda, por quanto tempo e a que custo. Sem letramento financeiro, qualquer avanço regulatório perde eficácia”.

Inovação e segurança

Na visão da procuradora do BC, Natália Alves Duarte Barbosa, o principal desafio é equilibrar inovação e segurança. “Nós não temos escolha. Já estamos passando por essa revolução. O desafio é conciliar inovação com segurança, porque sem confiança o sistema não funciona”, disse, ao destacar a importância de regras claras de responsabilidade e proteção ao consumidor.

Do lado do Legislativo, o consultor do Senado, Rafael de Castro Alves, mostrou que o tema já se traduz em propostas concretas. Ele citou o PL 4089, que cria multa automática de 10% às instituições financeiras em caso de descontos indevidos. “A ideia é proteger o beneficiário sem burocratizar o acesso”, explicou, lembrando que o Congresso também ampliou o escopo da lei para incluir trabalhadores autônomos.

“Potencial sem controle não basta. O que precisamos é de um sistema financeiro que combine eficiência, confiança e justiça social”, lembrou o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Paulo Dias de Moura Ribeiro, que mediou o terceiro painel do evento.

Fintechs

As fintechs trouxeram uma visão prática de como a tecnologia pode reduzir custos e tornar o crédito mais acessível. O responsável jurídico por Produtos do Nubank, Rafael Wock, foi direto: “No consignado, preciso ter certeza de que a pessoa é quem diz ser. A biometria facial traz mais segurança que a assinatura física.” Segundo ele, a digitalização permite taxas mais baixas. “Enquanto a média do consignado para servidores está em 1,85% ao mês, conseguimos operar a 1,57%. Esse é o efeito da tecnologia”, disse.

Já o consultor jurídico da ABBC, Djalma Silva Júnior, alertou que a rapidez da inovação precisa vir acompanhada de limites. “Vivemos uma revolução digital no consignado. Mas potência não é nada sem controle. A autorregulação é essencial para separar o joio do trigo”, defendeu, lembrando que práticas abusivas podem comprometer a credibilidade do mercado.

“O desafio não é só ampliar o acesso ao crédito, mas fazer isso com segurança. Só assim o consignado privado terá futuro”, resumiu Natália, do BC.