RIO INNOVATION WEEK 2025

"A instituição que não aderir ao Open Finance estará em desvantagem"

Segundo Ana Carla Abrão, diretora-presidente da Associação Open Finance, um dos trabalhos é evoluir o IQD, para medir qualidade de dados

Ana Carla Abrão/Associação Open Finance
Ana Carla Abrão/Associação Open Finance | Imagem: divulgação

Com menos de cinco anos de vida, o Open Finance no Brasil pode ser considerado maduro. São cerca de 100 milhões de consentimentos ativos, 65 milhões de usuários únicos e mais de 4 bilhões de chamadas de APIs por semana. Já a iniciação de pagamento movimenta mais de R$ 1 bilhão por mês. Na avaliação de Ana Carla Abrão, diretora-presidente da Associação Open Finance – criada para representar a estrutura definitiva de governança do sistema – o Open Finance já “caiu no gosto” dos brasileiros, mesmo sem uma estratégia de comunicação estruturada.

Para a executiva, novas funcionalidades como a portabilidade de crédito devem acelerar a adesão. Mas o potencial está longe de se esgotar: “o céu é o limite”, enfatiza Ana Carla. Os desafios, no entanto, não são triviais. Incluem, por exemplo, melhorar a qualidade de dados que trafega no ecossistema e aumentar a adesão das empresas – hoje pouco mais de 700 mil, ou cerca de 1% dos consentimentos únicos.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista exclusiva dada por Ana Carla ao Finsiders Brasil durante o evento “Rio Innovation Week 2025“, realizado entre 12/8 e 15/8.


Adoção ao Open Finance

Finsiders Brasil – Neste mês, o Banco Central fez um balanço dos cinco anos do Open FInance. Entre outros números: cerca de 100 milhões de consentimentos ativos, 65 milhões de consentimentos únicos, iniciação de pagamento movimentando mais de R$ 1 bi por mês. Dá para dizer que o Open Finance pegou entre os consumidores?

Ana Carla Abrão – Eu acho que já caiu [no gosto], sem as pessoas perceberem muito isso. Então, por esse lado, é uma super oportunidade. Ou seja, já tem isso tudo [de consentimentos] sem ter um processo e estratégia de comunicação estruturado. E as instituições, principalmente as mais tradicionais, vinham com uma agenda mais regulatória, e menos de negócio. Se a gente chegou aqui, dentro dessas condições, imagina onde a gente não pode chegar. A própria Associação [Open Finance] tem a responsabilidade de comunicar e de chegar mais próximo da população e das empresas. Além disso, já percebemos as instituições olhando para o Open Finance como uma oportunidade de negócio, com diversos casos de uso. Então, vejo o sistema ganhar ainda mais tração e mais celeridade na adoção.


Digitais X tradicionais

Finsiders Brasil – No ranking dos maiores receptores de dados (a fase 2 do Open Finance), sempre notamos no ‘top 5’ alguns dos maiores bancos digitais. Eles souberam aproveitar mais esses primeiros anos do Open Finance? Ou os grandes bancos estão acordando?

Ana Carla Abrão – Eu acho que tem duas coisas aqui. De fato, eles [os bancos digitais] estavam mais preparados do ponto de vista tecnológico para entrar no Open Finance. Os bancos tradicionais tiveram que fazer investimentos nos seus sistemas legados, na organização dos seus dados. Então, acho que isso acabou drenando muito dos investimentos e dos esforços dos bancos tradicionais. No caso dos bancos digitais, além da tecnologia, eles já entraram com uma visão de negócio muito clara. E os números refletem um pouco disso. Mas acho que essa diferença entre os bancos digitais e tradicionais está se estreitando. Claro que é tudo muito assimétrico – alguns mais, outros menos – mas, de maneira geral, a gente já observa bancos grandes muito mais organizados, muito mais preparados e com as suas forças de venda usando o Open Finance.


Concorrência

Finsiders Brasil – No início do Open Finance, havia inclusive uma grande reticência dos maiores bancos em relação à implementação do sistema, principalmente pelo efeito sobre a concorrência…

Ana Carla Abrão – Sim, legítimo. A gente sabe que era uma agenda de concorrência que precisava acontecer. Aconteceu e está acontecendo. Mas, para o incumbente, para o banco tradicional, aquilo era você ter que abrir as suas informações e ter que lidar com um mundo muito diferente do ponto de vista de concorrência. Porque, afinal de contas, ele tinha o monopólio daquela informação daqueles clientes. De uma hora para a outra, você tem que franquear isso com o seu concorrente. Então, no início, além de ter que pagar a conta, não só da própria implementação, [tinham também] a conta da sua transformação digital. Acho que foi, então, uma postura legítima dos bancos, mas hoje vejo uma postura muito diferente quando se olha para o potencial de negócio que o Open Finance pode gerar.


Valeu a pena?

Finsiders Brasil – Pesquisa recente da EY aponta que mais de 60% das instituições financeiras dizem que o Open Finance ainda “não valeu a pena”. Por que ainda existe essa percepção?

Ana Carla Abrão – Acho que se [a instituição] não percebeu, eu acho que é melhor perceber logo [o potencial do Open Finance]. Quem não está no Open Finance hoje está em desvantagem competitiva. Acho que quem não está, tem que entrar, ou estará em uma situação muito pior do que os seus concorrentes. Agora, em relação ao discurso de que ‘não valeu a pena’, talvez isso esteja vinculado ao volume de esforço regulatório, de investimento, mas sinceramente acho que essa percepção e postura estão mudando. Sobre a questão dos investimentos, sempre digo que ainda bem que eles ocorreram. Porque isso forçou, de alguma maneira, os bancos tradicionais a fazerem investimentos nas suas bases de dados, na sua tecnologia, que os mantêm super competitivos, super rentáveis. E, assim, continuam nos mantendo como o País na fronteira da inovação e da eficiência financeira.


Iniciação de pagamento e novas funcionalidades

Finsiders Brasil – A iniciação de pagamento, principalmente com a criação da Jornada Sem Redirecionamento (JSR), é tida como a grande promessa para fazer o Open Finance deslanchar e entregar benefícios tangíveis para os clientes. Como evolui a modalidade?

Ana Carla Abrão – Esse é um excelente exemplo. Você vê que a JSR, hoje, está em vários dos bancos tradicionais. Muitos oferecem a funcionalidade de ‘trazer dinheiro’ [de outras instituições]. Foi um foco de resistência muito grande, uma preocupação do ponto de vista de segurança e está sendo adotado. Da mesma forma, eu vejo o Pix Automático e a portabilidade de crédito, que tem o potencial de alavancar o acesso a crédito e a redução do spread na ponta. Todas essas funcionalidades que a gente está vendo e outras que virão a partir delas reforçam o venho dizendo: o céu é o limite. A partir do momento que você tem uma rede interoperável, conectada, com flexibilidade e associado a uma capacidade de inovação tão grande dos participantes, a gente pode esperar tudo.


Crédito

Finsiders Brasil – Sobre a portabilidade de crédito, os testes começam neste ano? O lançamento será em 2026? Qual o cronograma? E como será esse produto?

Ana Carla Abrão – Os testes começam neste ano e o go live [lançamento oficial] será em fevereiro do ano que vem. A gente está desenhando agora. A ideia é fazer uma jornada muito simples para o cliente. Até porque a jornada de consentimento vem antes, que é uma jornada que ainda gera algum tipo de atrito. Mas a jornada de portabilidade precisa ser simples, para o cliente entender o que está fazendo. E, claro, dar oportunidade de uma contraproposta pelo banco originador, mas garantir que isso não seja uma forma de bloquear o acesso à portabilidade. Vamos começar com o crédito pessoal, depois avançamos com o crédito consignado federal. Esse último tem mais desafios do ponto de vista tecnológico, porque tem a questão da margem consignável.

Finsiders Brasil – Há um plano de se criar um marketplace de crédito a partir dos dados do Open Finance? Como seria isso e para quando? Seria o retorno da EPOC? [sigla para Encaminhamento de Proposta de Operação de Crédito, modalidade prevista na fase 3, no primeiro cronograma do Open Finance no Brasil, mas não levada adiante até agora].

Ana Carla Abrão – Esse [projeto] não está no cronograma de prioridades do Banco Central, que vai até o final de 2026, mas vem sendo discutido pelos participantes. O BC volta e meia conversa conosco sobre a ideia de ter um marketplace de crédito. Do ponto de vista técnico, não é tão desafiador assim. Afinal de contas, a gente tem uma rede conectada; portanto, pronta para colocar uma funcionalidade dessas no ar. Aqui vai ser uma discussão de próximos passos. Já temos muita coisa ‘no prato’ até o final de 26. Mas, possivelmente, será o próximo passo a partir da portabilidade. O marketplace é a EPOC rebatizada, já com os aprendizados que tivemos nesses últimos anos de jornada.


Qualidade de dados

Finsiders Brasil – Outro tema prioritário para 2025 e 2026 é a qualidade dos dados no sistema. O que já melhorou e o que ainda falta avançar?

Ana Carla Abrão – Na pessoa física, já melhorou bastante. A gente tem menos tickets [reclamações] abertos em relação à qualidade de dados PF. Para a PJ, ainda é um desafio importante. Está também como prioridade no cronograma para 2025 e 2026. E hoje o que a gente fez foi ter, dentro de Monitoramento, uma área específica para fazer monitoramento de jornada e qualidade de dados PJ. A gente precisa tirar essa diferença em relação à PF. Sabemos que Pequenas e Médias Empresas (PMEs) devem ser grandes beneficiárias de Open Finance. A gente precisa chegar lá e garantir o aumento da adesão, e uma vez tendo maior adesão, que a gente possa utilizar os dados com mais consistência.

Finsiders Brasil – Há uma ideia de se criar no Open Finance uma espécie de Índice de Qualidade de Serviço, como o IQS do Pix? Como seria isso?

Ana Carla Abrão – O Open Finance tem o IQD, ou Índice de Qualidade de Dados. É uma avaliação da qualidade da adequação técnica das APIs [sigla em inglês para interfaces de programação de aplicações]. Então, ele te diz lá se aquela API está transitando os dados, do ponto de vista técnico, da forma correta, no formato correto. Isso é o IQD, que é o ‘primo’ do IQS do PIX. O que a gente precisa evoluir em relação ao IQD? Embora ele garanta a qualidade técnica do dado, não garante o que está dentro do dado. Um exemplo: eu posso garantir, via IQD, que uma data de nascimento está vindo no formato correto. Mas pode ser que eu receba uma data de nascimento de uma pessoa que está ativa e nasceu em 1903. A evolução do IQD é justamente a gente passar a ser capaz de identificar essas inconsistências e corrigi-las.


Adesão PJ

Finsiders Brasil – Quais são os grandes desafios para as empresas aderirem ao Open Finance?

Ana Carla Abrão – Principalmente a jornada. A jornada hoje depende de uma confirmação de que a pessoa que está dando aquele consentimento tem o poder para tal. A resolução do Banco Central é muito clara: diz que qualquer pessoa que tem o poder de movimentar uma conta tem o poder de dar consentimento. Mas, no caso da PJ, esse desafio é um pouco maior. Porque não necessariamente a pessoa que está ali ‘logando’ a conta… ela pode ter poderes para comandar um pagamento, mas pode ser que não tenha poderes para efetuar aquele pagamento. Ou seja, ela depende de uma outra pessoa que tenha alçada para confirmar aquele pagamento. Então, o que a gente tem discutido hoje é como garantir que essa jornada fique simplificada, mantendo as diretrizes normativas do Banco Central.

Finsiders Brasil – No Open Banking do Reino Unido, as empresas aderiram bem ao sistema, não? Por quê? O que muda em relação ao nosso Open Finance?

Ana Carla Abrão – No Reino Unido, é muito simples. Eles partiram do princípio de que quem tem acesso a uma conta corrente – ou seja, a pessoa que tem acesso ‘logado’ à conta de uma empresa e vê ali saldos, investimentos, transações – se ela tem esse poder, teria o poder para compartilhar dados. Aqui a nossa preocupação é que isso pode, de alguma forma, estar interferindo no poder que o dono da empresa está dando para os seus operadores naquela conta. Do ponto de vista jurídico, isso pode ser um problema. Por isso é que a gente está tentando fazer com muita responsabilidade. Até o final do ano, a gente deve resolver principalmente a [jornada] de empresas de um sócio só, que não deveria ter uma conversão muito diferente da PF. Depois passamos [para aquelas] de dois sócios, três sócios. Assim, vai adicionando complexidades e resolvendo elas no tempo.


Governança e diversidade

Finsiders Brasil – No ano passado, publicamos uma reportagem sobre a falta de diversidade no Conselho do Open Finance. O tema segue relevante, pois ainda existe baixa representatividade feminina nessa estrutura. Como você enxerga essa questão?

Ana Carla Abrão – Isso me chama a atenção, com certeza. Fazemos as reuniões online, e vamos passar a fazer algumas presencialmente agora, e é muito desconfortável – principalmente para mim, como CEO mulher da Associação – participar de uma reunião em que somos uma minoria. Quem aponta os conselheiros são as associações. Mas nós, pelo menos, estamos aqui liderando pelo exemplo. Na Associação, hoje, já somos 38% de mulheres e estamos trabalhando para chegar muito mais próximo dos 50%. Pelo nosso lado, estamos fazendo o trabalho em prol da diversidade, da representatividade mais diversa. Mas a gente precisa também que o conselho reflita [sobre] isso.

Finsiders Brasil – O que mudou, na prática. com a criação da Associação Open Finance e da estrutura definitiva de governança? É uma maior profissionalização do sistema?

Ana Carla Abrão – A Associação e a estrutura definitiva pelo Banco Central vieram no momento certo. O Open Finance já atingiu uma maturidade que permite certa autonomia do ponto de vista operacional e de gestão, mas muito em parceria com o Banco Central e com os participantes. No final de agosto, vamos fazer uma reunião de planejamento estratégico com o Conselho e o Banco Central, para definir um pouco também qual é a nossa missão, quais são as nossas atribuições. Isso porque, durante quase cinco anos, o Open Finance operou com uma governança muito diferente da que a gente criou agora. Agora tem uma camada de executivos que, teoricamente, tem essa autonomia e capacidade de execução. A Associação é executora do cronograma de prioridades do Banco Central. A expectativa é que o próximo cronograma seja feito a quatro mãos – pelo BC e pela Associação. Mas a gente também precisa discutir qual é a nossa ambição de futuro com o Open Finance… se vamos conversar com o Open Insurance, se vamos trazer o Open Health, o Open Capital Markets.


Futuro

Finsiders Brasil – Como está a interlocução com a CVM para a integração do Open Finance com o Open Capital Market? 

Ana Carla Abrão – Temos tido conversas muito informais porque estamos muito focados no tombamento da estrutura [definitiva de governança]. Hoje, a Associação está 100% operacional e todos os processos já estão sendo tombados para a Associação. Então, nesse primeiro momento, a gente focou muito em estabilizar a nossa operação administrativa e financeira para garantir que a associação assumiria toda a operação do Open Finance sem nenhum tipo de ruptura. O que a gente tem recebido muito são consultas de outros reguladores e governanças para que a gente possa, de alguma forma, compartilhar a nossa experiência com eles. [Esse tema] faz parte do planejamento estratégico que faremos no final de agosto. Mas ainda é uma discussão. Até porque, do ponto de vista regulatório, a Associação Open Finance está muito bem definida no seu perímetro.

Finsiders Brasil – Fraudes e golpes são grandes desafios hoje no setor financeiro. Como o Open Finance pode criar funcionalidades para prevenir esse tipo de problema?

Ana Carla Abrão – Esse é um tema super importante. Uma é a discussão, inclusive, da transparência do consentimento, da educação do que é o consentimento. Garantir que o cliente, quando dá o consentimento, sabe exatamente o que está compartilhando e com quem. E sabendo que pode, a qualquer momento, cancelar esse consentimento. Do ponto de vista de fraudes, tem também todo o monitoramento do ecossistema para garantir que não tenha nada fora do padrão, tanto no aspecto técnico, quanto regulatório. E, finalmente, o que às vezes eu sinto falta são casos de uso vinculados à prevenção de fraude. Por exemplo, hoje no celular temos cartão, aplicativo de banco. Muitas vezes, você perde o celular ou é furtado, e tem que sair ligando para cancelar tudo. Pelos trilhos do Open Finance, dada a conectividade e interoperabilidade, a gente poderia ter um caso de uso que, com um só clique, a pessoa poderia cancelar todas as suas relações financeiras.

*O jornalista viajou ao Rio de Janeiro a convite da RecargaPay.