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Crescem cancelamento e venda de licenças por fintechs

Especialistas veem "seleção natural" no mercado e apontam desafios que têm feito empresas desistirem de ser uma instituição regulada

Regras para instituições financeiras
Regras para instituições financeiras | Imagem: Adobe Stock

Depois do boom de novas autorizações para operar como instituição de pagamento (IP) e Sociedade de Crédito Direto (SCD), agora um movimento que começa a crescer é o de cancelamento de licenças de fintechs junto ao Banco Central (BC), assim como a venda delas para outras empresas.

O Finsiders Brasil apurou que a Klavi, também de Open Finance, está em processo de aquisição da Inipay, uma ITP. De acordo com uma fonte a par do assunto, a operação depende de aprovação do órgão regulador, assim como outros trâmites habituais. Procurada, a fintech não comentou.

Somente em setembro, o órgão aprovou a mudança de controle de três fintechs (Blu, Will IP e Embracred), conforme publicações no Diário Oficial da União. No ano, até agora, houve dois cancelamentos de licenças de IP ou SCD: Zapay e For You. Em 2023, o Sebrae também desistiu de atuar com sua SCD, um ano depois de receber o sinal verde do BC.

Negociações

Ainda que pequena, a lista de aquisições ou cancelamentos de licenças deve aumentar nos próximos meses, segundo especialistas. A Ame Digital, da Americanas, é uma dessas que está à venda. A fintech da varejista em recuperação judicial informou recentemente que contratou a consultoria Centria Capital Partners para buscar potenciais interessados no negócio.

O banco digital alemão N26, que anunciou a saída do Brasil em novembro de 2023, também tenta vender sua licença de SCD. A empresa admite isso nas demonstrações financeiras mais recentes, referentes ao primeiro semestre de 2024. “A administração da N26 Brasil está no processo para executar o próximo passo para a operação no Brasil. Esse próximo passo contempla a possibilidade de transferência do controle da licença de Sociedade de Crédito Direto junto ao Banco Central do Brasil.”

O Finsiders Brasil apurou que a Quanto, de soluções de Open Finance, está desde o ano passado tentando vender sua operação, inclusive a licença de iniciador de transação de pagamento (ITP). Em maio de 2023, a empresa demitiu praticamente toda a equipe, mas naquela época negava o encerramento das operações.

Nas demonstrações financeiras referentes ao segundo semestre de 2023, último documento disponível no site do BC, a própria Quanto reconhece o cenário: “A Quanto Network é parte do grupo Quanto Holdings LTD e está atualmente em um estado dormente, buscando opções de venda ou liquidação.”

Consolidação

Segundo especialistas ouvidos pelo Finsiders Brasil, as movimentações de cancelamento ou venda de licenças que têm ocorrido são um reflexo do amadurecimento do ecossistema de fintechs. A tendência é que a consolidação cresça daqui para frente, como parte de uma evolução do mercado, que viu explodir o número de IPs e SCDs nos últimos anos. Muitas delas, aliás, beberam da então abundante fonte do venture capital.

“Vejo uma ‘seleção natural’, com alguns casos de empresas que vão se provar insustentáveis no longo prazo”, aponta Bruno Diniz, especialista em inovação financeira e sócio da consultoria Spiralem. “As instituições que entrarem agora vão ter que encarar um mercado muito mais competitivo e difícil.”

João A. Nascimento, sócio do escritório CSMV Advogados, também vê um possível movimento de consolidação, mas pondera: “tem muita empresa sem valor algum”. Sem citar nomes, ele diz que existem exemplos de instituições que até receberam a licença do BC, mas ainda não começaram a operar, de fato.

Licenças paradas

Segundo Alessandra Martins, sócia do Machado Meyer Advogados e responsável pela área de fintechs do escritório, há casos de empresas que obtiveram autorização do BC, porém não tinham dinheiro para começar a operar. “Algumas delas receberam a licença há cerca de 1 ano, mas estão paradas. Aí o BC começou a mandar ofícios”, afirma.

De acordo com Alessandra, o artigo 1.124, do Código Civil, define o prazo máximo de um ano para as instituições financeiras entrarem em operação, após receberem a licença. “Na falta de prazo estipulado em lei ou em ato do poder público, será considerada caduca a autorização se a sociedade não entrar em funcionamento nos 12 meses seguintes à respectiva publicação”, diz o texto. Essa é a única “punição” a quem desiste.

No entanto, explica Alessandra, se a instituição começa a operar (mesmo que com volume baixo) e não cumpre as regras, o BC pode iniciar um processo administrativo sancionador, assim como aplicar penalidades administrativas com base na Lei 13.506.

Conforme a Resolução CMN n° 4.970, o cancelamento da autorização para funcionamento de uma instituição financeira poderá ocorrer tanto a pedido da própria empresa, quanto por ofício emitido pelo BC.

Jornada

Os especialistas são unânimes: obter a licença é apenas o primeiro passo na jornada de uma instituição regulada. Isso inclui, por exemplo, adequar equipes, sistemas, estruturas e capital conforme as regras do órgão regulador.

“Muita empresa entrou com pedido de licença, principalmente de IP, mas não estava preparada para manter a estrutura necessária para uma instituição regulada”, observa João, do CSMV Advogados. “Alguns eram competentes no que fazem, mas novatos no mundo regulado, e tomaram ‘apertos’ do BC, seja por inexperiência ou por não ter estofo financeiro.”

O BC também monitora as instituições para identificar se elas estão seguindo o que apresentaram em seus planos de negócios quando pediram autorização. “O que está no plano tem que acontecer no mundo real. O problema é que para muitas empresas o modelo de negócio não funcionou.”

Além disso, as mudanças de cenário macroeconômico, principalmente com impactos no crédito, afetaram os planos de algumas SCDs, observa Alessandra. Para essas empresas, outro desafio é a estruturação dos modelos de crédito. “As SCDs conseguem originar crédito a um custo regulatório baixo. O que é caro numa SCD é montar um bom modelo de crédito”, diz João.

Apesar da concorrência mais acirrada no mercado de fintechs de crédito, há espaço para empresas que apostam em nichos ou públicos específicos, diz Alessandra. “Não vejo um mercado saturado, e sim o surgimento de soluções para novos mercados.”

Atualmente, existem 160 instituições de pagamento reguladas pelo BC. Em dezembro de 2023, por exemplo, eram 115. Um ano antes, não passavam de 80. Já a relação de SCDs, cuja regulamentação é mais recente (de 2018), tem quase 130 empresas autorizadas. No final do ano passado, eram 116, mas em dezembro de 2022 a lista não chegava a 100.

O Finsiders Brasil tentou contato com o Banco Central por meio da assessoria de imprensa. Uma série de questionamentos também foi enviada, mas não obtivemos retorno até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto.