Projeto propõe lei para 'finanças abertas', com direito até a 'conselhão'; especialistas são contra

Projeto de lei complementar que acaba de chegar ao Senado quer criar regras únicas para Open Finance, Open Insurance e Open Capital Market

Desde o início do mês, está em tramitação no Senado um projeto de lei complementar (PLP) que pretende regulamentar o compartilhamento de dados de clientes entre instituições do setor financeiro, indústria de seguros e mercado de capitais. Na prática, o PLP 207/2023 — de autoria da senadora Soraya Thronicke (Podemos/MS) — propõe uma legislação única para os sistemas Open, chamado pelo PLP de “Finanças Abertas”. Assim, a proposta coloca debaixo do mesmo guarda-chuva Open Finance (sob a alçada do Banco Central), Open Insurance (da Superintendência de Seguros Privados, Susep) e Open Capital Market (da Comissão de Valores Mobiliários, CVM). 

Hoje, essas iniciativas são reguladas por normas infralegais. Ou seja, não há uma lei no Brasil que discipline o funcionamento desses sistemas de dados abertos. O BC foi pioneiro ao construir o Open Banking, que evoluiu para Open Finance e já soma mais de 40 milhões de consentimentos ativos. Já a Susep formatou o Open Insurance — atualmente em implementação — com base na experiência do BC. Isso deve ocorrer, ainda, com o modelo que a CVM prevê lançar no âmbito do mercado de capitais

Nas últimas semanas, o texto do PLP começou a circular em grupos no WhatsApp, provocando principalmente reações de surpresa e espanto entre profissionais, executivos e líderes de fintechs, bancos e entidades do mercado. A avaliação geral é de que a proposta não faz sentido e ignora o histórico de desenvolvimento conjunto do regulador e do ecossistema ao longo dos últimos anos. Conforme o Finsiders apurou, neste momento, algumas associações do setor estão construindo um documento colaborativo para responder ao projeto. 

O projeto de lei

O texto propõe, por exemplo, a obrigatoriedade de participação das instituições autorizadas a operar por BC, Susep e CVM. Pelas regras atuais, apenas os maiores players — dos segmentos S1 e S2 — são obrigados a integrar o sistema Open. Na visão de executivos e especialistas, a mudança terá um impacto grande para as empresas. Isso significa ter de arcar com mais custos regulatórios, de infraestrutura tecnológica e pessoal, por exemplo.

Outra novidade é a criação de uma espécie de ‘conselhão’ da economia Open, do qual participariam não apenas BC, Susep e CVM, como também a Secretaria Nacional do Consumidor (ligada ao Ministério da Justiça), a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), além de associações ou grupos de associações do setor financeiro — o texto não cita quais. 

Vale lembrar, ainda, que hoje tanto Open Finance quanto Open Insurance já possuem conselhos deliberativos com representantes de diversas entidades. No caso do Open Finance, aliás, o BC já trabalha na montagem de uma estrutura definitiva de governança. “A criação de um conselho deliberativo com integrantes do poder público vai engessar nossas decisões”, analisa Marcelo Martins, diretor-executivo da Associação Brasileira de Fintechs (ABFintechs) e membro do conselho do Open Finance na cadeira 2.3.

Chama a atenção também a responsabilidade que os reguladores terão no “conselho deliberativo das finanças abertas”. De acordo com o texto, os órgãos reguladores são “responsáveis objetivamente por falhas na infraestrutura tecnológica para reparação de prejuízos causados aos clientes”. E assim “responderão solidariamente por crimes praticados contra os clientes das instituições participantes, nos termos do art. 25 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, o Código de Defesa do Consumidor.”

Texto precisa de debate, defendem especialistas

“Fraude é um problema para todos do ecossistema. O inimigo é comum. Não sei se precisaríamos de mais uma lei. Talvez devêssemos aprimorar a legislação já existente”, diz Adriana Camargo, líder de políticas públicas da Belvo, plataforma de dados e pagamentos de Open Finance. 

Com o texto original, o PLP não deve ir adiante, de acordo com as fontes ouvidas pela reportagem. “Precisa de muito mais debate e refinamento de proposta técnica. O mercado e os reguladores precisam ser ouvidos. Do jeito que está, não deve ir para frente”, afirma Adriana. “Me parece que estamos falando de um debate mais político, e menos técnico”, diz uma outra fonte.

Gabriela Ponte Machado, sócia do escritório Lobo de Rizzo Advogados, lembra que os projetos de lei que envolvem os reguladores do setor financeiro são, normalmente, encabeçados por esses próprios órgãos. Aliás, tem sido cada vez mais comum a criação de consultas públicas para receber sugestões do mercado e da sociedade. “É difícil vermos projetos de lei no setor financeiro que não passam antes por uma discussão com o mercado”, diz.

“Na minha visão, o projeto de lei não faz sentido. Até porque o Open Finance, por exemplo, está bastante adiantado em sua construção, na fase 4. A Susep também está avançada com o Open Insurance. Já a CVM acabou de lançar consulta pública para tratar de Open Capital Market”, diz Marcelo, da ABFintechs.

Neste momento, o PLP aguarda a definição do relator para ir à primeira comissão, a de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática, do Senado. 

O que dizem os reguladores

Procurado, o Banco Central (BC) não respondeu à reportagem. Quando houver um retorno, este texto será atualizado.

Em resposta aos questionamentos, a CVM diz entender como “bem-vindos” os movimentos e propostas que têm como objetivo o desenvolvimento e a democratização do mercado de capitais no Brasil. “A autarquia acompanha a referida propositura, se coloca à disposição para contribuir e enxerga com bons olhos o fato de políticas públicas desenvolvidas e incentivadas pela CVM estarem ganhando destaque também no ambiente legislativo”, afirma o órgão, em nota.

Já a Susep afirma que “tomou conhecimento recentemente sobre o projeto e, portanto, a equipe técnica ainda está analisando o tema”.

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