Abordagem humanizada e personalizada pode 'desenrolar' a inadimplência no Brasil

Aumento da inadimplência no país já dá sinais de desaceleração, escreve Marcela Gaiato Martins, diretora da Recovery

Quando o assunto é inadimplência entre a população brasileira, em geral, os números não são otimistas. Há uma tendência em mostrar o crescimento dos inadimplentes, em todas as camadas sociais, mas pouco se fala sobre as etapas que envolvem a recuperação de uma dívida. Também não há muitos dados que envolvam análises comportamentais do brasileiro em relação às dívidas.

É uma lenda urbana, por exemplo, afirmar que o brasileiro não tem predisposição para pagar as dívidas. Na verdade, o brasileiro não se sente confortável em manter dívidas e quer se livrar delas. Esse desejo é real, mesmo quando elas passam do prazo de cinco anos e são consideradas prescritas.

Para quem insiste no contrário, faço uma provocação: em que momento de vida se encontra esse devedor? Se estivéssemos falando de investimentos, a pergunta soaria simples e natural. No mercado financeiro, conhecer o momento de vida do potencial investidor é mandatório para oferecer a melhor cesta de produtos para ele investir.

Momento de vida

Mas por que o interesse em conhecer o momento de vida de um devedor e, então, poder oferecer a melhor proposta para o encerramento de uma dívida não é tão comum? Uma das razões para a falta de interesse está relacionada às particularidades do mercado doméstico de crédito e securitização. No contexto brasileiro, ainda há um caminho a percorrer em termos de desenvolvimento nesse segmento. A cessão de créditos e a recuperação de dívidas não são tão naturalmente incorporadas à cultura financeira como em mercados mais avançados.

Além disso, é preciso considerar o alto índice de inadimplência entre os brasileiros, que coloca o país em uma situação desafiadora nesse aspecto. A necessidade de lidar com um grande número de devedores inadimplentes pode dificultar a personalização das propostas de negociação. No entanto, mesmo diante desses desafios, é crucial buscar soluções que levem em conta as características individuais dos devedores, visando a uma recuperação mais eficiente e satisfatória para ambas as partes envolvidas.

O papel da tecnologia

No Brasil, a aplicação inteligente de dados, incluindo o uso da inteligência artificial (IA), está revolucionando o processo de recuperação de crédito. Para além das análises tradicionais de crédito e cobrança, a IA utiliza modelos estatísticos e aprendizado de máquinas para compreender os comportamentos passados dos devedores.

Esses modelos identificam nuances comportamentais, como receptividade a propostas de quitação e interações prévias com os credores. Na prática, tais informações são essenciais para oferecer descontos personalizados e superar o desafio de estruturar propostas de renegociação que sejam adequadas ao bolso e à realidade do cliente.

Marcela Gaiato Martins, diretora de produtos B2C, marketing e atendimento ao cliente da Recovery. Foto: Divulgação

A inteligência artificial assume um papel central nesse processo. A IA possibilita a análise de centenas de dados, viabilizando a oferta de valores factíveis para os devedores em diferentes fases de suas vidas. A partir do cruzamento desses dados, cresce também a assertividade para criar ofertas de quitação de dívidas que, de fato, caibam no orçamento do devedor. Assim, há uma maior chance de sucesso na recuperação de dívidas.

A recuperação de crédito no Brasil é um processo que requer paciência, pois aqueles que possuem dívidas precisam de tempo para compreender sua situação e analisar as ofertas de quitação. Não é possível estabelecer um prazo médio para a quitação, pois os perfis dos inadimplentes variam significativamente. No entanto, no mercado de securitização, o prazo médio para fechar um acordo, após o primeiro contato de cobrança, é de aproximadamente dois meses. Já o prazo médio de parcelamento gira em torno de oito meses.

Desenrolar e personalizar as dívidas

A personalização desempenha, então, um papel crucial nessas negociações, tornando-as mais efetivas e ágeis. Com o avanço do uso de dados para apresentar a melhor oferta e a abordagem mais adequada na otimização do relacionamento entre as empresas de recuperação de crédito e os inadimplentes, aumenta o otimismo em relação à redução da inadimplência no país.

Adicionalmente, a implementação do programa Desenrola, criado pelo governo federal para facilitar a quitação de dívidas inferiores a R$ 5 mil, pretende ajudar a enfrentar o desafio da inadimplência e reduzir o número de famílias brasileiras endividadas. Com foco na educação financeira e no apoio aos devedores, o programa vai oferecer soluções práticas e acessíveis para que as pessoas possam organizar suas finanças, renegociar suas dívidas e retomar o controle sobre sua vida financeira.

O Desenrola busca promover parcerias com instituições financeiras e empresas do setor para viabilizar condições mais favoráveis de pagamento, incluindo redução de juros e outros esforços para facilitar o processo de quitação das dívidas. Por meio desse programa, o governo e as entidades envolvidas esperam proporcionar um ambiente propício para a recuperação financeira das famílias e contribuir para a redução dos índices de inadimplência no país.

Quadro positivo

A partir do cenário mais positivo em relação aos níveis de endividamento da população brasileira, aliado às projeções de crescimento na oferta de empregos e de redução da taxa básica de juros (Selic) — que acaba de ser reduzida pela primeira vez em três anos –, aumentam as chances de redução nos índices de inadimplência antes mesmo dos primeiros meses de 2024.

Essas expectativas são compartilhadas não apenas por mim, mas também pela Serasa, que divulgou recentemente um boletim econômico destacando a desaceleração no crescimento dos níveis de inadimplência, tanto entre os consumidores quanto nas empresas. O Boletim Econômico Serasa Experian, publicado em maio, aponta uma expectativa sobre a estabilização da inadimplência no início do segundo semestre de 2023.

A maioria dos brasileiros quer quitar suas dívidas, limpar o nome e estabelecer recomeços para sua jornada financeira. Observar essa característica da população é muito relevante para o crescimento do mercado de recuperação de crédito no país. Esse segmento tem buscado inovar, sobretudo com o apoio da tecnologia, para apontar caminhos factíveis que mostrem às pessoas como superar suas dificuldades financeiras e, consequentemente, reconstruir suas vidas.

A abordagem humanizada e cada vez mais personalizada tem se mostrado fundamental para ajudar os brasileiros a superarem a situação. Quando a população consegue pagar suas dívidas no prazo e utilizar os instrumentos de crédito de forma consciente, evitando a inadimplência, cria-se uma corrente de prosperidade. Consequentemente, esse cenário favorece o crescimento econômico do país.

*Marcela Gaiato Martins é diretora de produtos B2C, marketing e atendimento ao cliente da Recovery, empresa do Itaú especializada em recuperação de crédito no Brasil.

As opiniões neste espaço refletem a visão de founders, especialistas e executivo(a)s de mercado. O Finsiders não se responsabiliza pelas informações apresentadas pelo(a) autor(a) do texto.

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