BLOCKCHAIN

"Insegurança jurídica dificulta avanço da tokenização de ativos", diz BC

Já para Daniel Maeda, da CVM, a tokenização é uma representação, e o token deve ser tratado juridicamente como o ativo que representa

Antônio Marcos Guuimarães/BC
Antônio Marcos Guuimarães/BC | Imagem: Print de tela do evento Tokeniza2024

A tokenização de ativos, apontada como o futuro do mercado de capitais, ainda enfrenta alguns obstáculos para deslanchar. Segundo Antônio Marcos Guimarães, consultor do Banco Central, o maior desses desafios é a insegurança jurídica. “Os investidores estão com receio de punições e incertezas sobre como suas operações serão tratadas pela legislação atual”, disse Antônio, apontando que a falta de clareza está impedindo o avanço mais rápido da tecnologia. O consultor foi um dos palestrantes do evento Tokenize 2024, promovido pela Núclea e Febraban nesta quinta-feira (10/10).

Antônio explicou que há uma série de questões não resolvidas sobre a natureza dos tokens. “Ainda temos dúvidas sobre como classificar juridicamente um token. Mesmo que ele seja lastreado em um ativo financeiro, como uma debênture ou um imóvel, não sabemos se ele será tratado como valor mobiliário, ativo virtual ou algo totalmente diferente”, afirmou. Além disso, ele mencionou as dificuldades de executar judicialmente um token, caso ele represente um título de crédito. “Há incertezas se um token pode é um título executivo extrajudicial, como exige o artigo 784 do Código de Processo Civil. Isso prejudica a confiança dos investidores.”

Recusa de registro

Um exemplo concreto desse problema, segundo Antônio, está no mercado de multipropriedades imobiliárias. “No Rio Grande do Sul, por exemplo, os cartórios estão se recusando a registrar tokens de multipropriedade como direito real, reconhecendo-os apenas como direitos obrigacionais. A corregedoria do Tribunal de Justiça do RS soltou o provimento 38 para regular isso”, explicou. Isso significa que, se o imóvel for penhorado, quem comprou esses tokens pode perder tudo, já que o token não confere o direito sobre a propriedade. “Esse tipo de insegurança jurídica trava o avanço da tokenização nesse e em outros mercados”, disse.

Daniel Maeda, diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), trouxe uma visão diferente. “O token representa o ativo que já conhecemos. Se ele for lastreado em uma debênture, será tratado como uma debênture. A tecnologia pode mudar o formato, mas a essência do produto continua a mesma”, afirmou Daniel. Ele destacou que a CVM já possui uma estrutura regulatória preparada para lidar com os tokens, especialmente quando se trata de valores mobiliários. “Estamos prontos para dar segurança jurídica ao mercado, mas o grande desafio está em como as instituições e os participantes do mercado vão se adaptar a essa nova realidade”, comentou.

A questão da adaptação também preocupa Eric Altafim, diretor de Produtos e Corporate Sales do Itaú. Para ele, a tokenização oferece grandes vantagens, mas o processo de adoção não é simples. “A tokenização pode reduzir custos e democratizar o acesso ao mercado de capitais, mas o custo de adaptação das instituições ainda é muito alto”, disse. Ele citou o uso da tecnologia blockchain, que pode automatizar processos como o pagamento de cupons ou dividendos, sem a necessidade de intermediários. “Um contrato inteligente pode fazer isso de forma automática e segura, mas integrar essa tecnologia com os sistemas atuais não é tão simples quanto parece”, afirmou Eric.

Drex é a chave

O Drex, a moeda digital do Banco Central, foi apontado por Eric como uma peça-chave para destravar o processo. “O Drex vai permitir liquidações rápidas e seguras em operações tokenizadas, algo que hoje ainda é uma barreira. Com essa moeda digital soberana, podemos aumentar a confiança nas transações”, disse o executivo. Para ele, o Drex será o “sangue que circula no sistema financeiro tokenizado”, acelerando a adoção dessa tecnologia no Brasil. O BC acaba de regulamentar a segunda fase do Piloto Drex.

Da esq. para a dir., de cima para baixo: João Accioly (CVM), Rodrigo Furiato e André Daré (Núclea), Eric Altafim (Itaú) e Daniel Maeda (CVM)

André Daré, CEO da Núclea, reforçou as dificuldades operacionais que o mercado está enfrentando na adoção da tokenização. “Ainda temos muitos desafios para integrar os sistemas tradicionais das instituições financeiras com as redes blockchain. Isso envolve custos altos e uma adaptação tecnológica complexa”, afirmou. Ele destacou que, embora já existam iniciativas concretas de tokenização, como a antecipação de duplicatas mercantis e a emissão de CDBs tokenizados, o processo de adoção em larga escala ainda está nos primeiros passos. “O mercado está avançando, mas de forma lenta, porque essa integração não acontece do dia para a noite”, disse André.

Além disso, há o risco de fragmentação do mercado se as instituições financeiras desenvolverem soluções de tokenização sem uma padronização adequada. “Se cada banco ou corretora criar sua própria rede, sem interoperabilidade, teremos um caos. Precisamos de uma padronização para garantir que todos os sistemas possam conversar entre si”, alertou Eric, lembrando que a Anbima está discutindo a criação de um padrão único para o mercado brasileiro de capitais tokenizados, nativo ao Drex.

Marco regulatório

No fim da discussão, Antônio voltou a destacar a necessidade de avanços na legislação para resolver as inseguranças jurídicas. “Não é uma questão de se, mas de quando vamos precisar de um marco regulatório mais claro”, disse, pedindo mais ação coordenada entre o BC e a CVM. Ele destacou a importância de uma abordagem conjunta para dar confiança ao mercado. “Sem uma regulamentação mais clara, continuaremos enfrentando receios e dificuldades para atrair investidores, tanto nacionais quanto internacionais”, afirmou.

João Accioly, diretor da CVM, concordou que o processo de regulamentação e adoção da tokenização será gradual. “Não vamos ver uma mudança abrupta. Os modelos tradicionais e os tokenizados vão coexistir por um tempo”, disse João. Ele ressaltou que o papel do regulador é garantir a segurança dos investidores, mas sem sufocar a inovação. “O ideal seria que as empresas buscassem se enquadrar na regulação de forma proativa, e não tentar fugir dela”, afirmou.

“Estamos em um momento de transformação, e é fundamental que todos trabalhem juntos para garantir que a tokenização atinja seu pleno potencial”, disse Rodrigo Furiato, vice-presidente de Negócios da Núclea e moderador do painel. “A colaboração entre o mercado e os reguladores é fundamental”.

“Tokenização não é disruptura, é aperfeiçoamento”

João Pedro Nascimento/CVM

Para o presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), João Pedro Nascimento, a tokenização “não é disruptura, é aperfeiçoamento do que já fazemos no mercado de capitais”. Nascimento abriu o evento Tokeniza2024 e participou do primeiro painel de debates nesta terça-feira (10/10).

Ele destacou que a tokenização é uma realidade que veio para ficar. “O Brasil está na vanguarda ao adotar a tokenização como parte de um esforço maior para democratizar o mercado de capitais e incluir mais emissores e investidores”, disse.

A tokenização de valores mobiliários já está acontecendo dentro do sandbox regulatório da autarquia, onde a maior parte dos projetos submetidos envolve a exploração da tokenização.

Para o presidente da CVM, a tecnologia tem o potencial de transformar a infraestrutura do mercado, particularmente em áreas como pós-negociação, envolvendo custodiantes e depositários centrais. Ele também ressaltou a importância de trazer “a criptoeconomia para o ambiente regulado”.

Os outros participantes do painel, como Antônio Berwanger, superintendente de desenvolvimento de mercados da CVM, e Joaquim Kavakama, CEO da Núclea, concordaram com Nascimento, reforçando a relevância da regulação para garantir que a tecnologia seja incorporada ao mercado de forma estável.

Luis Vicente de Chiara, da Febraban, e Carlos Ratto, do Safra, trouxeram a perspectiva do setor financeiro, destacando o papel das instituições bancárias na integração da tecnologia e na sua adequação às normas já estabelecidas.

No entanto, Nascimento foi categórico ao afirmar que o Brasil não deve simplesmente replicar o que está sendo feito em outras jurisdições. “O País está desenvolvendo um arcabouço regulatório que já é referência lá fora”, disse ele, reforçando a importância de o Brasil continuar inovando no uso de tecnologias como blockchain e tokenização. “É preciso impedir a arbitragem regulatória” , disse.