Parcelado sem juros e rotativo: explicando a guerra das narrativas

O debate sobre limitar o parcelado sem juros, ou impor um teto ao rotativo, está no começo; uma análise mais profunda ajuda a explicar o tema

O Banco Central (BC) busca uma solução para os altos juros cobrados no rotativo com cartões de crédito. Os bancos explicam que os altos juros são influenciados também pelo risco associado às transações conhecidas como “parcelado sem juros” com cartões de crédito. De forma ainda tímida, o varejo informa que não pode viver sem o crédito parcelado, enquanto não tenho visto nenhuma manifestação organizada das credenciadoras.

Com pouca gente falando sobre o assunto, mas ninguém de fato explicando os detalhes, a mídia acaba fazendo seu o papel como pode, às vezes “desinformando”. Nesse sentido, o cartão de crédito está se tornando o grande vilão dos altos juros e o “parcelado sem juros” aparece como outro grande culpado. 

Tenho muita dificuldade com as “narrativas”, pois cada um “puxa a brasa para sua sardinha”, sem se preocupar com a análise mais profunda. Vamos falar sobre os seguintes tópicos:

  1. Como funciona o parcelado sem juros
  2. Sistema de pagamentos com cartão de crédito 
  3. Aumento da concorrência e do número de cartões
  4. Endividamento das famílias
  5. Custo das fraudes

Espero contribuir com este artigo, trazendo mais detalhes sobre essa indústria, sua história, e a lógica de como opera. Ao final, não tenho a petulância de explicar por que os juros são tão altos no Brasil, mas mostrar que existem outros elementos a serem considerados. Meu objetivo é fazer com o que o leitor entenda melhor e julgue por sua própria análise.

Vamos falar sobre quem realmente dá o crédito ao consumir; quem assume o risco da inadimplência; quem provém o funding para o sistema funcionar; como funciona o “parcelado sem juros”; como se calcula a inadimplência dessa indústria; quanto existe de fraude no sistema e quanto disso se mistura com a inadimplência etc.

Como funciona, de fato, o parcelado sem juros

Antes de tudo, temos que admitir que, na prática, não existe parcelamento de pagamento sem juros. Certamente esse tipo de financiamento/crédito tem seu custo embutido no preço do produto/serviço.

Há cerca de 15 anos tive a oportunidade de estudar um white-paper publicado por um analista/economista estrangeiro (não guardei as informações), no qual ele discutia efeitos econômicos semelhantes em países que enfrentaram décadas de instabilidade econômicas e/ou políticas. Em sua análise ele destacou Brasil, Argentina, Chile, México e Turquia. Para os mais jovens, vale destacar que vivemos as décadas de 1970, 80 e parte da de 90 com instabilidade econômica e hiperinflação. A solução para o caso brasileiro, então, veio com o Plano Real.

Em todos os países citados, os bancos se afastaram do consumidor. Afinal, dar crédito para pessoa física em um ambiente inflacionário é quase sempre ineficiente, pois exige muita atenção e bastante recurso. No Brasil, sempre foi mais simples, fácil e seguro aplicar no ‘overnight’, emprestando dinheiro para o governo, além de grandes empresas.

Entretanto, a vida continua e, em todos esses países, coube ao varejo dar crédito aos seus clientes. No Brasil, as palavras mais comuns sempre foram: fiado, caderneta e crediário. O varejo brasileiro ainda se aproveitou de um sistema financeiro muito evoluído, talvez um dos melhores do mundo. Assim, passou a dar crédito aceitando cheques pré-datados (ou melhor, pós-datados). 

A partir da estabilização da economia brasileira com o Plano Real, a indústria de pagamento com cartões encontrou condições adequadas para crescer em todo o país, tanto na emissão de cartões, como na aceitação pelos lojistas. 

Duas empresas (antigas Redecard e Visanet) foram as responsáveis pela democratização dos cartões de crédito e débito, expandindo a aceitação em todo território nacional. Operavam como um duopólio, pois cada uma processava uma das duas principais bandeiras (Visa e Mastercard) de forma exclusiva. Dessa forma, não competiam entre si; na verdade tinham como concorrentes o dinheiro (papel-moeda) e cheques. 

Essas credenciadoras foram responsáveis pela criação da transação “parcelado sem juros” (PSJ) no cartão de crédito. Isto é, com uma oferta de valor extremamente atraente para o lojista, mas não sem custos. O lojista continua a fornecer o funding, ou seja, em uma transação PSJ de 3 parcelas, o lojista recebe os valores em 30, 60 e 90 dias. Em compensação, pagam uma taxa de desconto bem mais elevada. Já a tarifa de intercâmbio, que é a receita do emissor, pode superar 2,0%, quando se trata de mais de 6 parcelas.

Obviamente nem todos os varejistas vendem por meio do PSJ. Dentre os que ofertam o PSJ, o mais comum é a oferta de 3 parcelas no PSJ. Um exemplo são as empresas do setor de vestuário. As companhias aéreas, em geral, oferecem financiamentos em 10 parcelas no PSJ. Já os varejistas que comercializam linha branca e/ou marrom tendem a ofertar o PSJ em 12 parcelas. Em resumo, é raro encontrar ofertas de PSJ além das 12 parcelas. O prazo médio nacional ponderado do PSJ está entre 4 e 5 meses.  

Edson Santos, sócio-fundador da Colink. Foto: Reprodução/LinkedIn
Edson Santos, sócio-fundador da Colink. Foto: Reprodução/LinkedIn

Alguns analistas afirmam que o PSJ necessita de ajustes a fim de corrigir assimetrias. Alegam que o varejista concede o crédito, mas é o emissor quem assume o risco. Afirmam que os juros estão embutidos nos preços das mercadorias e serviços, mas quem se beneficia desses juros são as credenciadoras, que ofertam a antecipação dos recebíveis aos lojistas.

Essa análise, contudo, carece de alguns importantes ajustes. Quem oferece o PSJ é, de fato, o varejista, mas a transação está limitada ao volume de crédito concedido pelo emissor do cartão. Portanto, são os bancos que limitam a oferta do PSJ.

Concordamos que os juros estão embutidos nos preços dos produtos e serviços oferecidos pelos varejistas com o PSJ, cujo valor das vendas só será recebido a cada parcela, a cada 30 dias do dia da transação comercial. Nem todos os varejistas antecipam os recebíveis. Entretanto, aqueles que necessitam podem antecipar os recebíveis com qualquer agente financeiro. 

Desde a implantação do registro de recebíveis em 2019, com a publicação de diversas circulares e resolução do BC, o varejista passou a ter a possibilidade de “vender” ou “dar em garantia” os valores referentes aos recebíveis com transações de cartões de crédito. Qualquer instituição, financeira ou não, pode adquirir esses recebíveis, ou usá-los com garantia de financiamentos ao varejistas, ampliando a concorrência. Assim, a antecipação de recebíveis deixa de ser um produto exclusivo das credenciadoras.

Analisando os últimos 40 anos, tanto no Brasil quanto em outros países, sempre foi o varejo o principal fornecedor de crédito ao consumidor — e acredito que continuará sendo. Se alguém pudesse acabar com o PSJ no cartão de crédito, tenho certeza de que o varejo encontraria outra forma para conceder crédito aos seus clientes. 

Não voltará ao cheque pré-datado, porém saberá utilizar a plataforma de pagamento do Pix, com os futuros Pix Garantido e o Pix Automático — aliás, uma transação que deve se mostrar mais eficiente e de baixo custo ao lojista. 

Evoluções à parte, precisamos dar um passo atrás… 

Como é o sistema de pagamentos com cartão de crédito

No mundo inteiro, quem fornece o funding para o sistema de cartão de crédito funcionar são os emissores (em geral, bancos). O lojista recebe em 2 dias (D+2, sendo D o dia da transação), enquanto o banco emissor do cartão recebe do portador do cartão (ou seja, o consumidor) entre 22 e 25 dias após a transação. O prazo depende da eficiência de cada instituição financeira em processar e emitir as faturas.

O risco de crédito fica com o emissor e é ele quem define o limite de cada cartão, com base na sua análise de risco do cliente. Umas das principais receitas do emissor de cartão de crédito é a tarifa de intercâmbio, normalmente definida pelas bandeiras e que leva em consideração o risco do sistema. 

A receita obtida pela taxa de desconto (MDR), cobrada do lojista pela credenciadora, é dividida entre credenciadoras, emissores e bandeiras. A tarifa de intercâmbio, por sua vez, é a parte que remunera o Emissor do cartão de crédito.

O Brasil é o único país que, como regra, paga o lojista 30 dias depois da transação (D+30). Essa mudança ocorreu em 1984, por conta do ambiente de hiperinflação. Isto está bem explicado no capítulo 1, página 21, do livro “Payments 4.0 – As forças que estão transformando o mercado Brasileiro”.

Em outras palavras, o que ocorreu naquela época foi uma transferência de recursos do varejo para o setor financeiro. Assim, quem fornece o funding é o lojista, e não o emissor. Mesmo assim, o emissor recebe uma tarifa de intercâmbio muito semelhante ao que recebem os emissores em mercados maduros.

A taxa de desconto (MDR) cobrada do varejista brasileiro se assemelha às taxas de mercados maduros, mas temos uma tendência de esquecer o custo do dinheiro pelos 30 dias (ou 28 dias, para ser mais preciso).

Vale lembrar que o mercado de credenciadoras passou por mudanças importantes desde a abertura do mercado, em 2010. Hoje são mais de 25 credenciadoras e cerca de 250 subcredenciadoras atuando no mercado brasileiro. O BC passou a ser o agente regulador do setor de pagamentos desde outubro de 2013, com a publicação da Lei 12.865, promovendo inovação, competição, transparência e inclusão financeira.

O aumento da concorrência e as mudanças regulatórias produziram resultados interessantes na distribuição das receitas obtidas por meio do MDR. A indústria de pagamentos continuou a crescer em média 20% ao ano, desde a abertura do mercado, apesar de todas as crises que enfrentamos. Entretanto, a receita total da taxa de desconto, que foi de R$ 9,9 bilhões no ano de 2009, atingiu a cifra de R$ 60,8 bilhões em 2022, crescendo em média 15% ao ano, em função da concorrência. 

A redução da taxa de desconto beneficiou todo o varejo brasileiro, entretanto, a distribuição dessa receita (MDR) sofreu uma alteração importante. Em 2009, 45,5% da taxa de desconto ficava com as credenciadoras. No ano passado, essa participação caiu para 22,9%, conforme o quadro abaixo.

Comparando os valores de 2002 e 2009, os emissores de cartões de pagamento tiveram um aumento na receita de taxa de intercâmbio equivalente a 7,7 vezes, enquanto a receita líquida das credenciadoras avançou apenas 3,1 vezes. Essa diferença diz respeito a vários fatores, por exemplo, competição por preço na taxa de desconto; ajustes nas tarifas de intercâmbio; aumento da participação de cartões premium (Gold, Platinum Black e Infinite – também conhecida como platinização do mercado); aumento da participação do “parcelado sem juros” no volume total etc.

Nos últimos anos, também houve um aumento substancial na quantidade de cartões emitidos no Brasil. É sobre isso que vou falar agora. 

Crescimento do número de cartões e oferta de crédito

No fim de 2018, existiam 184 milhões de cartões de crédito no país. Quatro anos depois, são 430 milhões, um crescimento de 134%. No ano seguinte, de todos os cartões em circulação, 50 milhões haviam sido emitidos por grandes bancos, enquanto 8 milhões foram emitidos pelas fintechs. Três anos depois, as fintechs foram responsáveis por 36 milhões dos cartões em circulação, contra 57 milhões dos bancos. Em termos percentuais, os bancos tradicionais avançaram 14%, ao passo que as fintechs dispararam 350%.

Não existe bolha dos cartões, e sim o que estamos experimentando é um processo de inclusão financeira. Ou seja, aumentou a oferta de crédito para as pessoas que estavam fora do sistema. Outra informação importante é a comparação com alguns dos países, cuja indústria de cartões de crédito está amadurecida – nesses casos, é natural superar os 2 cartões por habitante.

A inclusão financeira foi promovida pelas novas regulamentações do BC e implementada pelas fintechs e pelos bancos digitais. Sucesso quase impossível de ser realizado por um banco tradicional. A concorrência é sempre bem-vinda. Entretanto, dar crédito, especialmente ao consumidor, exige mais do que implantar tecnologia; é necessário desenvolver certas competências.

Penso que é natural que muitos novatos no setor cometam erros, ofertando crédito além do limite ideal, principalmente para consumidores sem a educação financeira adequada. Podemos entender que isso faz parte do processo de crescimento e desenvolvimento de um sistema de crédito mais eficiente e inclusivo.

Por outro lado, também precisamos analisar o endividamento das famílias, e quanto o rotativo do cartão de crédito representa desse indicador. 

Endividamento das famílias brasileiras

De acordo com dados publicados pela Febraban no “Panorama de Crédito”, cuja fonte de dados é o BC, o endividamento total das famílias brasileiras foi de R$ 3,4 trilhões em agosto de 2023. Desse saldo, o rotativo do cartão de crédito correspondeu a R$ 75,4 bilhões. A primeira conclusão que se tira desses dados é de que a dívida relativa ao rotativo com cartão é de apenas 2,2% do saldo da dívida das famílias.

O relatório aponta que 49,26% do saldo do rotativo está inadimplente, ou seja, o valor da inadimplência foi de R$ 37,1 bilhões em agosto último. Mas, afinal, quanto isso representa de todo crédito concedido pelo sistema de cartões de crédito? O valor transacionado com cartões de crédito é sempre menor do que o limite de crédito concedido. Mesmo assim, podemos nos basear no valor das transações com cartões (TPV). 

Entretanto, qual período? Certamente não é só de um mês de transações, pois temos o “parcelado sem juros” que pode chegar a 12 parcelas. Então, se dividirmos o valor da inadimplência pelo volume financeiro transacionado no primeiro semestre de 2023 — que foi de R$ 1.104,6 bilhões, de acordo com o relatório da Abecs, — podemos dizer que a inadimplência foi de 3,4%. Conclusão, estamos discutindo somente o valor do rotativo que está inadimplente, não do sistema de cartões como um todo. 

O relatório aponta, ainda, que a taxa de juros cobrada no rotativo chegou a 445,66% em agosto deste ano. Não há nenhuma dúvida de que as taxas cobradas são muito altas, mas se referem apenas a 2,2% do total do endividamento das famílias brasileiras. Nesse sentido, as narrativas que temos observado na mídia não explicam adequadamente, dando a entender que todo sistema de cartões de crédito é o vilão dessa história.

Importante lembrar que a resolução 4.549/17, do Conselho Monetário Nacional (CMN), passou a não permitir a utilização dos saldos em rotativo por prazo superior a 30 dias, exigindo que a instituição financeira ofereça ao consumidor uma alternativa de parcelamento do saldo devido. O artigo 2 diz: “…o saldo remanescente do crédito rotativo pode ser financiado mediante linha de crédito para pagamento parcelado, desde que em condições mais vantajosas para o cliente em relação àquelas praticadas na modalidade de crédito rotativo, inclusive no que diz respeito à cobrança de encargos financeiros.”

Por fim, e não menos importante, é preciso analisar um dos grandes desafios para a indústria: as fraudes.

Brasil é um dos campeões mundiais em fraude
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Um estudo realizado pela IBM, intitulado “2022 IBM Global Financial Fraud Impact Report”, menciona: “A fraude com cartão de crédito é o tipo mais comum de fraude experimentada em todos os países. Quase um terço (31%) dos brasileiros já vivenciou fraude com cartão de crédito.”

A maior parte dos prejuízos financeiros com fraude no Brasil fica com as instituições financeiras. De certa forma, a legislação e o judiciário protegem o consumidor brasileiro. Mas qual é o valor total das fraudes com cartões de crédito no Brasil? Procure, você encontrará estudos, análises, pesquisas, porém nenhuma informação dos bancos. Aliás, nem a Febraban fala sobre o assunto. Por que isso é tão difícil para as instituições financeiras? 

Sabemos que boa parte do valor inadimplente do cartão de crédito, na verdade, se refere a fraudes. O uso ilegal da identidade de um consumidor para obter crédito, que evidentemente não será pago, se soma ao valor total da inadimplência. 

Uma análise adequada sobre o assunto, contudo, tem de levar em consideração esses dados. Cabe às instituições financeiras nos mostrar o quanto custa a fraude no Brasil e quem está pagando essa conta.

A discussão não se encerra aqui, por óbvio. Também não tenho a petulância de explicar por que os juros são tão altos no Brasil, mas mostrar que existem outros elementos a serem considerados — alguns deles explorados ao longo do texto. O debate está só no começo.

*Edson Santos é um dos principais especialistas em pagamentos no Brasil. Hoje sócio-fundador da consultoria Colink, foi presidente da Global Payments no Brasil e CFO da Redecard.

Este é um espaço editorial, onde são publicadas análises e opiniões de especialistas de mercado e executivo(a)s com temas de interesse do ecossistema de fintechs. O Finsiders não se responsabiliza pelas informações apresentadas pelo(a) autor(a) do texto.

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